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segunda-feira, setembro 30, 2024
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Pedro Sabiá

Sentado na calçada de casa, meus olhos de criança contemplavam, encantados, os jumentos que passavam com as pesadas ancoretas de madeira dispostas uma de cada um dos lados dos animais, cheias de água.

 

O desfile dos jumentos começava muito cedo, de madrugada, e continuava manhã adentro. A beleza do som do trote dos cascos nos paralelepípedos da ruazinha que dava para o olho d’água Bananeira só encontrava rival no canto dos galos. Aliás, ambos os sons começavam a um só tempo, pois que galos, jumentos e homens acordavam nas primeiras horas das gélidas madrugadas de cruviana da cidadezinha de Pedro II.

Ao meio dia, os pobres animais passavam mais lerdos na volta, pois agora traziam o líquido precioso que todos nós bebíamos e usávamos na higiene pessoal, além de lavar utensílios e roupas, aguar plantas. Enfim, tocar a vida.

As cargas d’água tinham quase sempre como destino os potes enfileirados nas bilheiras das famílias mais abastadas. Já os caminhos d’água, estes trazidos por um único homem (não por animais) numa espécie de cambito feito com galho de certas árvores, apoiado no ombro com as latas (reaproveitadas geralmente do querosene Jacaré) dependuradas por cordas (alguns usavam correntes). Uma lata em cada extremidade do pedaço de pau. Esteticamente, os botadores d’água eram verdadeiras balanças ambulantes.

Um dos principais botadores de água era seu Chico Farofa. Baixinho, mirradinho, vozinha fanhosa, olhinhos miúdos, mas espoletados. Seu Chico botava água do nascer do dia ao pôr do sol. Era nosso botador d’água oficial. Tá acabando a água? Chama o Chico Farofa! Mas havia muitos outros: seu Chicó e seu filho Chicozinho, Barbosa e seu Irmão Cara de Mercedes, Chico da Doca, Bento, Filho do seu Capistrano e muito mais.

O cambo de seu Chico Farofa era bem curvo e muito liso, pois, segundo ele, tinha para mais de vinte anos de uso. E como é o cachimbo que entorta a boca do pitador, os botadores de água desenvolviam, dentre outras coisas, um andar inusitado, uma espécie de marcha militar, que era a maneira que inventavam para não derramar muita água entre a coleta e o despejar nos potes de barro das casas dos consumidores. Quase todos os botadores colocavam pequenos galhos de árvore dentro das latas para diminuir as chances de perderam o perigoso líquido com o caminhar.

Porém, nada disso se comparava ao fato de, vez em quando, surgir por detrás do Bar do Clube aquela figura esquelética, andando (bamboleando!) nas pontas dos pés, os braços longe do tronco, como a nadarem num mar invisível; a calça pega-marrecas atada à cintura por uma embira, a camisa surrada, aberta em todos os botões (quando, então, podiam-se contar as costelas). Os movimentos do homem eram, a princípio, velozes. Mas aí iam ficando cada vez mais lentos, quase parando. Um homem-preguiça. Enfim, esse homem tinha profissão e nome. Era o melhor funileiro da cidade. Seu nome: Pedro de Sousa. Mas todos o conheciam como Pedro Sabiá.

(*) Desenho de Pedro Sabiá por J. Batista

Ernâni Getirana @ernanigetirana é professor, poeta e escritor. Membro da APLA, da ALVAL e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. É autor, dentre outros, do livro ‘Debaixo da Figueira do Meu Avô’. Escreve para esta coluna às quintas-feiras.

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