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Literatura: o que é, para que serve? (II)

Introdução

Provavelmente as primeiras manifestações daquilo que viria a ser chamada de ‘literatura’ surgiu quando o ser humano procurou explicar como o mundo funcionava e a si mesmo através dos mitos. É a partir dos mitos que também virão a poesia e a ciência. Dando um ‘salto pedagógico’, talvez nossa primeira preocupação ao pensarmos sobre o ensino de literatura seja conhecermos em detalhe o processo de aquisição da escrita e da leitura pelas crianças (nossos primeiros leitores).

 

Aprender a ler e escrever é tão complexo e desafiador quanto ensinar a ler e escrever. Dessa forma, quem aprende e quem ensina estão no mesmo jogo e aprendem e ensinam ao mesmo tempo. Encontrar o prazer ao realizar atividades de leitura/escrita deve ser uma meta sempre presente na mente dos professores, contudo.

Este pequeno artigo procura examinar os dois lados dessa gangorra (quem aprende e quem ensina) no processo de aprendizagem de leitura/escrita/literatura. Mas antes, rememora a historicidade dessas práticas ao longo do tempo. Na última parte do artigo procuro dialogar um pouco com a figura do poeta, do fazer poético na contemporaneidade disruptiva.

 

Roda de fogo

Existe, hoje em dia, um consenso em torno do fato de que nossos ancestrais costumavam reunirem-se ao redor de uma fogueira à noite para comerem, trocarem ideia, planejar o dia seguinte, imaginar coisas, transmitir conhecimento para as gerações mais jovens. Claro que tudo isso muito bem aspeado e muito longe dessa imagem ser trazida para o agora.

Num certo sentido, com algum esforço, podemos abstrair e dizer que nessas ‘rodas de fogo’ teve início aquilo que viria a ser os mitos, a arte, a literatura, enfim, dentre outras coisas.

Ainda hoje, quando falta energia elétrica à noite, as pessoas costumam sentar-se às calçadas e a conversa segue solto. A literatura de cordel tem boa parte de sua origem nessas rodas, não qualquer roda, evidentemente. Nas cidades do interior anteriormente à chegada da televisão, a imaginação das pessoas era povoada por mil histórias a partir dessas rodas de conversa.

 

A escola, possível roda de fogo

Uma pergunta que sempre cabe fazer no que diz respeito à leitura/escrita/literatura é: para quê? Mesmo quando lidamos com crianças e jovens que lêem, ou seja, são tecnicamente alfabetizados, poucos escrevem no dia-a-dia. Evidentemente que numa sala de aula com trinta crianças, cada uma tem seu ritmo, seu tempo.

Por outro lado, cobrar do professor um acompanhamento individualizado para com cada um(a) dela(e)s, sabendo como os professores são mal pagos, sem estrutura, etc., fica meio romântico exigir certas atitudes dos mestres, se bem que compromisso é compromisso.

No tocante ao processo de aprendizagem do aluno é muito importante que ele esteja convencido de que aprenderá a ler e escrever. Por sua vez é preciso que o professor veja o aluno como seu próprio sujeito de aprendizagem. O conhecimento e o reconhecimento do alfabeto pela criança, por exemplo, proporciona à criança uma ideia daquilo com que ela está tratando, o limite de seu trabalho. Num depoimento contundente, Paulo Freire relembra como foi tal processo em sua formação:

“Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior do meu país. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz. Por isso é que ao chegar à escolinha particular já estava alfabetizado. A professora Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a “leitura” do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da ‘palavramundo’.” (Paulo Freire, A Importância do ato de ler, Cortez 1982).

Mas a escola é uma ‘roda de fogo’ da sociedade. Ou melhor, a própria sociedade cria para si mesma essa ‘roda de fogo’. E como tal, no sistema capitalista, esta roda de fogo representa a classe dominante. Sem essa clareza, não conseguimos compreender essa instituição. Haveria muito a ser tratado acerca das metodologias vigentes na escola. Por falta de espaço, diríamos apenas, no tocante à leitura/escrita e sendo bem específico, que exercícios de cópia e ditado não podem acabar em si mesmos.

Outro aspecto mais genérico, mas fundamental, é observamos o fato de que as crianças oriundas das classes dominantes desde o nascimento estão incluídas numa ‘atmosfera escolar informal’. O próprio ambiente familiar destas crianças está inoculado por atos de leitura. Algo bem diverso ocorre no ambiente social das crianças pobres. Aqui, o contato delas com a escrita/leitura é ínfimo.

Assim, elas chegam à educação formal muito distanciadas do perfil de um(a) ‘aluno(a)  ideal’ aos olhos do(a) professor(a), que embora não tendo um passado infantil muito diferente dos meninos e meninas que lhes chegam às mãos, possui uma ‘cabeça burguesa’, crivada pela ideologia burguesa, o que, convenhamos, só piora ainda mais o aprendizado do(a)s menino(a)s.

ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor, poeta e escritor. Autor de vários livros, dentre eles “Lendas da Cidade de Pedro II”. Pertence à APLA, ALVAL e ao IHGPI. Escreve às quintas-feiras para o portal News Piauí.

 

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