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Dona de 80% de Jeri (CE) surge após 40 anos, pede terras e retoma 49 mil m²

Um dos destinos mais badalados e visitados do Nordeste, Jericoacoara é alvo de uma polêmica. Após 40 anos, uma empresária procurou o estado para alegar que terrenos que somam 7,1 milhões de m², equivalente a 80% da área onde está a vila —com suas casas, hotéis e restaurantes, por exemplo— são de sua propriedade. Ela fechou um acordo com o governo do estado e terá 49,5 mil m² cedidos.

 

A reivindicação surpreendeu autoridades e moradores, que dizem desconhecer qualquer história de posse da família que se apresenta como dona da área.

Depois de uma análise dos documentos, a PGE (Procuradoria-Geral do Estado) informou que as matrículas apresentadas, datadas do ano de 1983, são verdadeiras e, legalmente, ela é realmente a dona da área.

Entretanto, para evitar que centenas de famílias e empresários tivessem que sair de áreas já tituladas, o estado anunciou que fechou um acordo com cessão apenas de áreas desocupadas à mulher.

Quem apresentou os documentos foi a empresária Iracema Correia São Tiago. Em setembro de 2023, ela deu entrada com um processo no Idace (Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará), apresentando o seu direito à posse de três terrenos que teriam sido adquiridos pelo seu então marido, José Maria de Morais Machado.

O acordo foi fechado contra o Conselho Comunitário de Jericoacoara, que questiona o direito à posse (leia mais abaixo).

Área requerida pela mulher em Jericoacoara (CE) Imagem: Reprodução

Entenda o caso

Em nota, a Procuradoria-Geral do Estado alegou que a vila de Jericoacoara é uma “área arrecadada” pelo Idace para o estado do Ceará.

Segundo a PGE, por ser uma área arrecadada, “é obrigado se fazer constar, na respectiva matrícula, a ressalva quanto à obrigação do Estado de, aparecendo algum proprietário que comprove que possui imóvel, dentro da matrícula estadual, registrado em data anterior à arrecadação, promover o reconhecimento desse direito, retirando da sua matrícula a área comprovadamente de outro proprietário.”

Sem que a dona aparecesse, o Idace emitiu diversos títulos de domínio na área nos últimos anos, em um processo de regularização fundiária, dando posse a moradores e empresários que investiram pesado no local e tornaram um destino turístico conhecido até fora do Brasil.

O governo cearense realizou uma diligência no dia 13 de dezembro de 2023 para ver a situação de cada lote em litígio. Na área, foram catalogadas as construções e posses de pessoas que ocupam as áreas registradas pelo estado.

Em documento de 7 de maio, o governo Ceará fez um acordo em que “reconhece que a matrícula de propriedade do Estado se sobrepõe à matrícula anterior da acordante [Iracema], conforme as análises e estudos técnicos realizados pelo Idace e pela PGE.”

Acordo para minimizar dano

Com a confirmação do direito, e diante de um eventual impacto da “devolução” das terras, a Procuradoria-Geral do Estado procurou a empresária para dar início a tratativas de um acordo e minimizar os danos a quem vive no local.

“Caso simplesmente se retirasse a área do real proprietário da matrícula do Estado, muitos residentes e donos de comércios locais poderiam ser obrigados, até judicialmente, a sair de suas casas e estabelecimentos”, diz a PGE.

Nas conversas, a Procuradoria-Geral do Estado diz que conseguiu que a dona renunciasse a todas as terras de sua propriedade que estivessem ocupadas por moradores ou com quaisquer tipos de construções.

Assim, somente os terrenos que seguem em nome do Idace, e que não estão ocupados, passarão para a mulher, totalizando uma área de 49,5 mil m². “Além disso, todas as vias e acessos locais foram preservados”, diz a PGE.

Área em azul de Jericoacoara será cedida a empresária que apresentou documento de 1983 Imagem: Reprodução

Com o acordo, o estado se comprometeu a revogar os títulos que tenham sido “emitidos e não registrados, de áreas atualmente sem uso.” Ainda garantiu cancelar, desde que não haja construções ou posse, os títulos concedidos a terceiros que não foram ainda registrados em cartório.

Já Iracema, além de ceder as áreas já tituladas, renunciou a eventuais pagamentos de indenizações referentes às áreas.

Revolta de moradores

A “devolução” da área, porém, não foi bem recebida pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara. “Como que eu posso passar uma terra nessas dimensões que uma mulher relata ser proprietária dela, se nós nunca ouvimos falar dela?”, afirma Lucimar Marques, presidente do conselho.

“Como que eu tenho uma terra dessa, gigantesca, em um paraíso construído já há mais de 40 anos, e nunca ninguém veio aqui? Jeri é conhecida mundialmente, onde estava essa família quando o Jeri começou a se expandir? Onde estava essa família que nunca veio cercar o que era seu? Como que esta família aparece assim do nada querendo o filé mignon de Jericoacoara” Lucimar Marques

Ela afirma que o conselho e moradores estão preparando a documentação solicitada pelo estado para ratificar o acordo, mas adianta que pretendem ir à Justiça contra essa cessão.

“Nós estamos aqui na luta, não estamos com medo porque nós temos nossas histórias, nossos relatos, nossos conhecimentos. Nenhum advogado, nenhum procurador vai tirar isso de nós. Vamos para a guerra sem armas, porque a vitória vai ser nossa, com certeza. Nós somos filhos dessa terra e não vamos dar de presente o que é nosso.” Lucimar Marques

Outro lado

Em nota, a empresária Iracema Correia São Tiago afirmou que “não tem interesse em interferir na rotina da Vila” e que reivindicou as apenas em 2023 porque “não teve conhecimento do procedimento de Arrecadação das terras por parte do Governo, em 1997”. Leia a íntegra abaixo:

“A respeito das terras na área da Vila de Jericoacoara, a proprietária Iracema Correia São Tiago deixa claro, antes de tudo, que não tem interesse em interferir na rotina da Vila e que o acordo formalizado com o Governo do Ceará, através da Procuradoria Geral do Estado (PGE), prevê, inclusive, a renúncia às áreas que, mesmo dentro da sua propriedade, estão ocupadas, de forma a manter as moradias e empreendimentos já consolidados.

Em relação ao fato da reivindicação das terras ter se dado em 2023, a proprietária esclarece que não teve conhecimento do procedimento de Arrecadação das terras por parte do Governo, em 1997, tendo tomado conhecimento do referido procedimento anos depois.

A fazenda Junco I é o imóvel em questão, que tem parte de sua área no que é a atual Vila de Jericoacoara e outra parte na área do Parque Nacional de Jericoacoara, este criado em 2002 e ampliado por Decreto do Governo Federal em 2007, não tendo havido o pagamento de indenização correspondente. No ano de 2010, a proprietária pediu ao ICMBio a indenização por desapropriação, através de um processo administrativo. Em 2017, ainda sem o pagamento de indenização, a proprietária entrou na Justiça contra o Governo Federal e o ICMBio. Nesse período, a proprietária apresentou toda a documentação necessária para que não restassem dúvidas sobre o caso.

No decorrer deste processo – ainda em andamento – a proprietária tomou conhecimento de que a Arrecadação feita pelo Governo do Estado das terras de sua propriedade, onde hoje existe a Vila, se trata de um caso típico de nulidade, que não prescreve com o tempo. E, pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos Tribunais, no caso de Arrecadação, em que não se consideram matrículas anteriormente existentes, ela é nula de Pleno Direito. Essa arrecadação não pode ser convalidada no tempo. Ou seja, a nulidade não prescreve.

Além do mais, importante mencionar que o próprio ato de arrecadação do Estado e os títulos concedidos pelo Idace (Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará) ressalvam o direito de particulares não identificados por ocasião do procedimento de arrecadação.

Com esse entendimento jurídico em mãos, a proprietária, buscando uma conciliação, deu entrada em um processo no Idace, propondo receber as áreas remanescentes e renunciar às demais áreas. O processo foi remetido para a PGE, tramitando por diversos setores técnicos, inclusive com a realização de vistorias, e então foi formalizado acordo com o Estado. Assim, o acordo firmado retira a insegurança jurídica do assunto, visto que evita o questionamento judicial quanto aos atuais empreendedores e moradores da Vila. Além disso, por meio do acordo firmado, várias áreas foram asseguradas ao Poder Público e em favor do bem-estar da comunidade.”

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