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segunda-feira, novembro 25, 2024
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Manhã com sol entrando na sala

QUANDO A XÍCARA de café fumegante tocou-lhe os lábios naquela manhã e ele deu o primeiro gole, simplesmente não sentiu gosto de nada. Também não sentiu o sabor do cuscuz amanteigado que sua mulher fizera com tanto esmero.

 

Mas ele insistiu mesmo assim em comer do cuscuz, afinal de contas poderia ser apenas o nariz entupido, como de costume, a roubar-lhe, temporariamente, a gustação e o olfato. Coisa de pessoas que moram em lugares frios. Tomou mesmo assim o café com o cuscuz diante da mulher, não queria fazer a desfeita de não tomar.

Depois disso, sem dizer nada, pelo sim, pelo não, ele, mais que ligeiro, levantando-se da cadeira, correu até ao quarto de dormir e colocou algumas gotas de perfume no dorso da mão que levou ao nariz. Nada de sentir cheiro algum. Então uma certeza de uma tonelada caiu-lhe sobre a cabeça: estava sim infectado pelo vírus!

Com o coração disparado, a boca seca, ele correu ao armário das louças e separou   convenientemente o copo, talheres e prato em lugar determinado longe do alcance de todos da casa que naqueles dias, além de sua mulher recebia para o almoço do sábado sua filha e uma amiga dela, além da visita de outra filha  com o marido e os dois filhos do casal.

Separou também algumas mudas de roupa, separou a escova de dentes, o sabonete; pôs todas as máscaras (sim, desde o início da pandemia ele usava máscaras de pano, como recomendado pelas autoridades médicas) em uma caixa de plástico com tampa transparente, dessas da tapawere, e decidiu intimamente que passaria a ocupar, agora, um dos quartos de hóspedes, você sabe. 

Depois dessas ações mais imediatas, a segunda providência foi ir ao hospital ainda naquela mesma manhã com um amigo, o que fez. Doravante, porém, todo o cuidado seria pouco, esse pensamento martelava na sua cabeça minuto sim, minuto não.

O amigo ao volante, ele no banco de trás, ambos de máscara, álcool em gel para ambos. Após estacionarem, enquanto o amigo ficou dentro do carro, ele atravessou a rua e dirigiu-se ao hospital. Na verdade, dirigiu-se propriamente ao ambulatório acoplado ao hospital, que agora exibia uma placa grande afixada na parede acima da larga porta de vidro onde se lia ‘POSTO DE TRIAGEM – COVID 19’.

A porta do ambulatório adaptado era ampla e de vidro transparente grosso. Empurrou-a com o cotovelo e entrou de vez. A sala, toda branca e ampla, exceto pela presença de alguns armários ao fundo, duas mesas e um balcão de atendimento ao público. Exibia um enorme cartaz que estampava informações básicas sobre o vírus e medidas de proteção.

Ao lado desse cartaz, havia uma reprodução de La Pieta. Sentada à mesa sobre a qual havia alguns papéis, folhetos e um caderno grande de capa preta dura no qual ela punha os dados das pessoas que a ela se dirigiam como possíveis candidatos a contaminados pelo vírus, como ele constataria logo. Além da enfermeira havia um rapaz lá para dentro, em uma sala contígua que ele pôde ver de relance devido à lâmpada acesa sobre sua cabeça que esparramava uma luz forte mesmo para a manhã nublada e que iluminava o lado esquerdo da cabeça até ao ombro da enfermeira ali à sua frente a anotar seus dados: seu nome, senhor;  idade, senhor; endereço, CPF, tipo sanguíneo, senhor; e sintomas, ela solicitou, o que o senhor está sentindo? Ele respondeu prontamente a cada coisa dessas.

Ficha devidamente preenchida, o outro veio até ele e pedindo-lhe que se sentasse numa outra cadeira próxima à porta com a inscrição “coleta de sangue”, colocasse o braço no receptáculo metálico à altura do braço da cadeira. Durante a coleta foi que ele observou com mais calma que ambos, a moça e o rapaz, eram bastante jovens e estavam adequadamente uniformizados com máscaras, tocas, luvas e uniformes que consistiam em macacões presos com elásticos nos punhos e tornozelos.

Havia o logotipo do hospital do lado esquerdo do peito de cada um. Um silêncio meticuloso esgueirava-se por toda a sala ampla e totalmente branca que ele quase conseguia sentir no próprio corpo. 

Durante o tempo em que permanecera ali sentado à espera do médico, por duas vezes levantou-se e foi até à porta de vidro de onde telefonou ao amigo que permanecia de pé recostado ao carro do outro lado da rua e perguntou se ele poderia esperar mais um pouco até o tal médico chegar. 

Depois voltava a sentar-se na mesma cadeira de quando havia chegado ali, de costas para a porta de vidro, de frente para a enfermeira que continuava a checar papéis, a fazer anotações e atender a chamadas ao celular às quais respondia quase que só com monossílabos. Ele estava ansioso, acessou o celular algumas vezes para comunicar à mulher da doença.  Em uma dessas vezes que fazia uso do aparelho, seus olhos despregando-se da tela azulada perceberam uma porta semiaberta que até então não havia percebido propriamente talvez pelo fato de também ser, como quase tudo ali, branca.

A enfermeira a abrira para atender ao que parecia ser uma senhora de idade deitada em uma cama e que recebia soro em um dos braços (bem mais tarde ele viria a saber que a tal senhora já estava com a virose em estado bem avançado e que seria conduzida à capital para receber um tratamento mais adequado).

A senhora aparentava estar fraca, bastante debilitada e sua respiração era um tanto ofegante. Por uns segundos os olhares de ambos se cruzaram. Então a enfermeira que verificava o nível de soro dela, fez um gesto de carinho nela e voltou à mesinha da grande sala branca. Tendo, porém, o cuidado de deixar a porta quase totalmente fechada. ‘Ela, de vez em quando acorda, pergunta pela família e eu tenho que acalmar ela’, disse isso para ele.  Ele balançou a cabeça afirmativamente. (continua…)

ERNÂNI GETIRNA (@ernanigetirana) é professor, poeta e escritor. É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, da ALVA e da APLA. É autor de vários livros, dentre eles “Debaixo da Figueira do Meu Avô”.

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