Há um riozinho no Japão, que deve ter por aí coisa de apenas uns três quilômetros de extensão. Se tiver mais é coisa pouca, que nem cabe pôr aqui nessa história. Chama-se ‘Ytiwaua’, e que deve significar ‘rio pequeno’, ‘rio miúdo’. Pelo menos é o que eu acho. Porque as outras possibilidades de tradução seriam: ‘rio que desce das montanhas’, ou ‘rio que corta um arrozal’, ou, ainda, ‘rio para se ver à tarde pela TV sentado no sofá da sala de estar’. Essa última tradução é por minha conta e risco. E olha que eu me enfiei foi com força nos significados de ‘Ytiwaua’. De qualquer modo esse foi meu primeiro e único encontro com o riozinho: ele emoldurado pela tela da TV no que, agora penso ter sido, um documentário da Nat Geo.
Mas independentemente de ser o nome de um rio, pessoalmente acho a palavra Ytiwaua muito bonita, mas muito bonita mesmo. Quando eu a pronuncio fico com medo de não poder mais parar de pronunciá-la e de ficar eternamente dizendo: Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Y-t-i-w-a-u-a até que algum japonês tão maluco como eu me ouvisse do outro lado do mundo, através das correntes de ar que bailam pela atmosfera azulada do planeta e me gritasse de volta: 黙れ [Damare] (cale a boca!).
Talvez que um dia algum pássaro encantado possa levar a palavra Ytiwaua escrita num pedaço de papel de arroz no bico e o despeje sobre o Japão.
João, um amigo, mais velho três anos do que eu e tão avoado como eu, é quem fica dizendo que eles existem, os tais pássaros encantados. E que ele mesmo já tinha levado uns cocorotes do pai para que ele deixasse dessas besteiras, mas ele não deixa não. Quando a gente tem 16 anos a luta entre a realidade e o sonho é uma questão de vida ou morte da qual o sonho sai seriamente danificado. Mas não é esse o caso dele. Nem o meu. Pelo menos eu acho.
Ytiwaua deve ser uma palavra que representa tudo o que é belo e bom. Gostaria muito que o mundo fosse Ytiwaua e que não houvesse essas bombas explodindo dentro das roupas das pessoas, esses aviões atravessando arranha-céus em pleno azul da tarde, pondo tudo abaixo, essas matilhas de crianças e de velhos famintos despejados pelas ruas inundadas das cidades, essas enchentes engolindo as cidades, esse clima pesado de o homem sendo o lobo do homem, como me explicou um dia desses um tio meu, professor de filosofia.
Mas seria mesmo o Ytiwaua um rio para se conhecer pela TV do sofá da sala de estar? (Pois quando eu iria ao Japão para ver o rio cara a cara?) Pode ser que não, mas pode ser que sim; pois foi assim que eu o conheci e me encantei por ele. O Ytiwaua agora corre pela minha vida afora me trazendo uma incontida felicidade.
Bem, pelo menos foi esse um dos começos que imaginei para o livro que um dia achei que iria escrever. Eu na pele de um garoto de uns quinze anos, por aí. Mas terminei por descartar esse início, por achar que pudesse ficar infantil demais e não era bem isso que tinha em mente para o livro sobre o Ytiwaua.
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Outra possibilidade mais remota seria escrever um artigo sobre o rio. Algo como “O rio Ytiwaua e sua contribuição para a descontaminação do ecossistema aquático japonês”. Cheguei mesmo a iniciar pesquisa nesse sentido, mas também desisti porque não encontrei em nenhum lugar a garantia real da existência do Ytiwaua, embora tenha sido este documentário de TV que revelou-me que as tilápias, peixes que vivem no riozinho japonês, são verdadeiros índices de qualidade da água que ali corre . Então o jeito é confiarem em mim, isto é, no fato de que existe tal rio no Japão e sem mais demora aqui vou contar como foi nosso nipônico encontro. [Continua].
Ernâni Getirana é professor, escritor e poeta. Seu livro atual chama-se “Debaixo da Figueira do Meu Avô”. Escreve às quintas-feiras para esta coluna.