Foi com imensa alegria que recebi o convite de Laila Caddah para proferir uma palestra na Academia Piauiense de Letras sobre a obra de Fontes Ibiapina, seu avô, dia 24 de junho próximo passado. Esse autor é um dos poucos cuja família mantém viva sua memória de forma concreta: realizando exposições e seminários sobre sua extensa e significativa obra literária. O evento de agora ocorreu ao longo da semana comemorativa dos 100 anos de João Nonon de Moura Fontes Ibiapina.
Nascido a 14 de junho de 1921 no povoado Vaca Morta, município de Picos, Piauí, Fontes Ibiapina publicou cerca de 30 livros em vida. Outros tantos foram publicados postumamente. Sua extensa e rica obra literária se subdivide em duas vertentes, ficção propriamente dita e folclore. Da primeira são exemplo ‘Palha de Arroz’ e ‘Mentiras Grossas de Zé Rotinho’. ‘Terreiro de Fazenda’ e ‘Paremiologia Nordestina’ são exemplo da segunda. Mas tão importante quanto os livros publicados, é a coleção formada por inúmeros cadernos escritos de próprio punho. Nas palavras da professora e pesquisadora da UESPI, Doutora Raimunda Celestina, os cadernos de Ibiapina são de uma riqueza enorme tanto para ajudar a clarificar sua obra, como para a compreensão do ser piauiense.
Os tais cadernos nos revelam, dentre outras coisas, duas características do escritor Fontes Ibiapina: uma visão arguta por parte desse autor da realidade piauiense (e nordestina por extensão) e a consciência da importância de sua obra.
Nesse sentido uma das rotas que a literatura de Fontes Ibiapina traça com muita clareza é o que chamo de “Questão Piauí”. Resumidamente essa questão diz respeito à indefinição identitária característica do Piauí. Explico.
Enquanto os demais estados do Nordeste ou bem ou mal encontraram seu espaço, sua identidade; o Piauí parece que ainda hoje não a encontrou de todo. A Questão Piauí perpassa todas as instâncias de poder, da sociedade e da cultura piauienses.
O próprio Fontes Ibiapina disse em uma entrevista que “Ser piauiense é ouvir como se fala, qual a diferença, o que se faz lá. O ser piauiense é uma construção, o Piauí é tido como passagem de retirantes e de gado, […] o Piauí é visto como passagem entre o Nordeste das secas e a região amazônica”.
Um dos ângulos a partir do qual se pode também estudar a obra ibiapiana é o do folclorista. Ao contrário do que às vezes possa parecer, o folclore só enriquece a obra desse autor. Sobre isso, o grande folclorista Câmara Cascudo disse que ambas as literaturas (erudita e popular) são ricas, antigas e profundas e mesmo a literatura dita ‘erudita’, quando se vai pesquisá-la, suas narrativas de fundo vêm do folclore de seus respectivos povos. O folclore é uma das grandes matrizes literárias, arremata o mestre.
As comemorações dos 100 anos do nascimento de Fontes Ibiapina são, a um só tempo, uma efeméride alvissareira e necessária. Alvissareira porque é um testemunho de que a obra de um autor não finda com desaparecimento físico deste. Necessária por apontar para a necessidade imperiosa de que o Piauí redescubra suas potências, todas elas, a literária também.
Ernâni Getirana é professor, escritor e poeta. É autor, dentre outros livros de “Debaixo da Figueira do Meu Avô. Escreve às quintas-feiras para esta coluna.