Como toda moça de família abastada do interior naquela época, anos 1920, Doca era uma menina muito religiosa e trabalhadora. Fôra batizada, crismada, tivera a primeira eucaristia rodeada por toda a família. Morava na Cantinho, uma fazendinha que ganhara esse nome de seu bisavô materno, lá ela era muito feliz, obrigado. Os pais tiveram o cuidado para que ela aprendesse a ler, escrever e contar. Não à toa Doca possuía um diário no qual, vez ou outra, brotavam até uns poemas. Coisa de moça que estudava.
A fazendinha tinha coisa de uns 200 hectares, ‘uma coisinha de nada se comparada às fazendas de seu Milton Brandão’ e de seu Nogueira, ele, o bisavô, dizia. O avô não se via como um homem rico, nem sequer um homem de posses. Mas também não reclamava da sorte não. Da sorte que vinha de muito trabalho, como ele também dizia.
Mas Doca até que achava aquilo tudo grande, a fazendinha era seu mundo. Lá ela trabalhava, estudava e brincava. Essa impressão ficava bem clara na cabeça da moça quando, por exemplo, ela acompanhava o pai e irmãos na ‘mudança do arame farpado’ das cercas da fazendinha, de tempos em tempos. ‘Vocês acham a nossa propriedade grande? Pois fiquem sabendo que grandona mesmo são as do deputado Milton e as de seu Nogueira. Tem uma do deputado que a pessoa montada num burro entra às três horas da manhã e andando sem parar, sai do outro lado pra mais das dez horas da noite, isso nem parando pra comer ou ir no mato. E tudo isso por uma estradinha boa de se ver, feita decretada pelo pessoal do DNOCS’. E a menina Doca punha a mão na boca aberta e arregalava os olhos de admiração.
(capítulo 2 de “A Toca da Tia Doca”, um texto que vivará uma novela).
Ernâni Getirana é professor, poeta e escritor. Autor dentre outros livros, de “Debaixo da Fogueira do Meu Avô”. Escreve para essa coluna às quintas-feiras.