Era por volta das 22h30 de 22 de março de 1995 quando recebi, em casa, pelo telefone a notícia já de certo modo esperada, mas nunca desejada: “Zózimo, nosso mestre acaba de falecer! ”.
Do outro lado da linha estava, pesaroso, o professor Kleber Montezuma, secretário municipal de Trabalho e Ação Comunitária e um dos fiéis escudeiros do professor Wall Ferraz, o prefeito que Teresina acabava de perder.
Com sua morte, naquela noite triste e fria de março, Wall encerrava seu longo calvário, iniciado depois do meio-dia de 13 de fevereiro de 1995, quando sofreu isquemia cerebral, em casa.
Naquele dia, ele acabava de chegar de uma visita às obras do hospital-maternidade do bairro Dirceu Arcoverde (que depois receberia seu nome).
O prefeito fizera a visita de inspeção em companhia do presidente da Fundação Municipal de Saúde, Silvio Mendes.
E aquela que seria apenas mais uma das tantas visitas de rotina que ele fazia às obras em andamento nos bairros da capital, acabou sendo a última. E também sua última atividade como prefeito.
Mal-estar
Quando o prefeito começou a passar mal, seu médico particular, o neurocirurgião e deputado estadual Wilson Martins, que era seu vizinho, foi chamado pela família para atendê-lo.
O médico encontrou o prefeito agonizante, num acesso de vômito.
Prestou os primeiros-socorros e o conduziu às pressas em seu próprio carro ao Prontocor (hoje Prontocapi), no bairro Ilhotas, que à época funcionava com serviço de urgência e emergência.
Nesse deslocamento, o médico contou com a ajuda do filho mais novo do prefeito, Rodrigo Ferraz, à época acadêmico de jornalismo.
“O professor Wall encontrava-se hemiplégico à direita, afásico, dispneico, com alterações no ritmo cardíaco e com a pressão arterial de 240 por 120 mmHg”, diagnosticou o Dr. Wilson Martins.
Em outras palavras, o prefeito estava com um lado paralisado, sem fala e com assustadores picos de pressão.
Atendido no Prontocor, Wall reagiu bem e recebeu alta hospitalar três dias depois, para continuar o tratamento em casa.
Foi montada uma clínica particular em um dos quartos de sua residência, situada na Praça 16 de Agosto e mais conhecida como “Praça do Prefeito”, no bairro São Cristóvão, zona Leste de Teresina.
Nela, se revezavam um cardiologista, um neurologista, um fisioterapeuta e uma fonoaudióloga.
A equipe era supervisionada pelos doutores Wilson Martins e Silvio Mendes.
“A evolução foi tão surpreendente que a partir de 18 de fevereiro o prefeito já via TV e fazia as primeiras refeições à mesa de jantar. Desde então, até 24 de fevereiro, só houve melhoras. O prefeito já caminhava sozinho e pronunciava monossílabos, lúcido, consciente e participativo”, contaram seus médicos.
Recaída
Mas Wall teve uma recaída no dia 28 e foi novamente internado às pressas, agora no Hospital Getúlio Vargas (HGV).
Inicialmente, os médicos não quiseram fazer alarde sobre a gravidade da doença do prefeito.
As informações sobre o quadro de saúde de Wall eram transmitidas pelos doutores Wilson Martins e Silvio Mendes e repassadas por mim à imprensa.
Diante das complicações cardíacas, respiratórias e renais do paciente, a equipe médica decidiu transferi-lo para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, na noite de 1º de março, em uma UTI do Ar.
Em São Paulo, seu estado de saúde se agravava a cada dia, por conta de uma infecção hospitalar. Não ficou claro se ela foi adquirida em Teresina ou lá.
Martírio
Depois de ficar 21 dias entre a vida e a morte, respirando através de aparelhos, Wall faleceu na noite de 22 de março, aos 63 anos, no auge de sua carreira política e quando exercia o terceiro mandato de prefeito da capital.
O Hospital Albert Einstein deu como causa mortis “fibrilação ventricular, acidente vascular cerebral e insuficiência respiratória”.
Wall Ferraz era um homem de saúde precária. Cardiopata, levava uma vida regrada.
Era disciplinado com alimentação e remédios. Também com a jornada de trabalho.
Chegava pontualmente às 7h30 no gabinete e saía ao meio-dia. Estava de volta antes das 15h e saía às 19h da Prefeitura.
Levava uma vida reservada, restrita ao cumprimento da agenda oficial.
Teresina entre a dor e a incerteza
Ao mesmo tempo em que o professor Wall findava sua agonia, Teresina era tomada pela comoção pública.
As ruas que levavam ao aeroporto se encheram rapidamente, desde a manhã do dia 23. Eram pessoas simples, que acorriam de todos os pontos da cidade.
Elas partiam principalmente dos bairros e vilas mais distantes, de ônibus, de bicicleta, a pé, para dar o último adeus ao seu prefeito.
As emissoras de TV dedicavam cobertura especial à chegada do corpo e ao sepultamento, no final da tarde, no cemitério São José.
Naquela época, isso tipo de cobertura não era tão trivial quanto agora.
A despedida
Não fui ao aeroporto. Acompanhei tudo, o dia inteiro, pelo rádio e pela televisão, de minha sala, no Palácio da Cidade, de onde também passava informações à imprensa.
Eu exercia o cargo de secretário de Comunicação do prefeito.
Bem cedo, providenciei a impressão de milhares de cartazes com fotografia do professor Wall para distribuir à população durante a despedida do prefeito.
Era para que os teresinenses pudessem guardar uma última lembrança daquele que uma reportagem da Rede Globo mostrou como o “melhor prefeito do Brasil”, com base em pesquisa nacional do Ibope.
Na reportagem, feita pelo jornalista Leonel da Mata, Wall era apresentado como “Bem-amado”.
O jornalista e escritor Herculano Moraes captou e expressou com sensibilidade aquele momento, através de crônica publicada na imprensa local:
“O semblante assustado de Zózimo Tavares, naquela manhã de quinta-feira, 23 de março de 1995, não traduzia completamente a dor que a alma escondia. Nossa conversa, que frequentemente é longa e permeada de natural alegria, foi silenciosa”.
Pietá
A professora Cecília Mendes, da Universidade Federal do Piauí, pintou a imagem precisa para retratar Teresina naquele dia de luto: “Como uma Pietá, Teresina recebeu da cruz o corpo amado de seu filho morto. O olhar, a dor e o pranto sereno da terra-mãe expressam fielmente a desolação de todos os teresinenses. O filho era, de certo modo, o benfeitor dos mais pobres, dos migrantes que a cidade acolheu, dos habitantes das vilas da periferia pelos quais tanto trabalhou, dos servidores da Prefeitura com quem conviveu, dos garis que protegeu, dos camelôs que não expulsou, dos professores que tratou de igual para igual, dos fieis assessores que ouviu e orientou, dos intelectuais cuja produção valorizou, dos artistas populares que estimulou”.
Sem Wall, que era também seu Moisés, Teresina de repente perdia seu guia.
Eu, como outros auxiliares do prefeito, estava determinado a deixar o secretariado.
O vice-prefeito Francisco Gerardo, já investido no cargo de prefeito, reuniu a equipe e fez um apelo dramático para que todos continuassem em seus postos, redobrassem os esforços e levassem adiante o trabalho iniciado por Wall Ferraz.
Isso, nas suas palavras, seria a nossa maior e melhor homenagem ao professor Wall. Ficamos todos.
Um político como nunca se viu
O professor Wall Ferraz imprimiu um estilo particular de administração em Teresina. Um prefeito que marcou época. Um gestor que ficou na memória de seu povo como um político que tinha atitudes firmes, que governava para os mais necessitados, que zelava pela correta aplicação dos recursos públicos, que era arredio a propaganda e não tolerava esbanjamentos.
Preocupava-se com obras estruturantes, como os corredores de tráfego. São de sua gestão as intervenções nas entradas e saídas de Teresina, com a duplicação da Avenida João XXIII e a construção do Anel Viário Sul.
Da mesma forma, preocupava-se com uma pracinha de bairro ou de uma vila da periferia ou com a bandinha de música. Ou com os jardins dos passeios públicos.
Só inaugurava uma escola ou uma unidade de saúde quando ela estava funcionando a pleno vapor. E voltava depois, sem avisar, para chegar o funcionamento.
Não embromava, não dava calote, não recebia serviço malfeito, cumpria os horários rigorosamente.
Não era de distribuir tapinhas ou abraços. Nem sorrisos.
Apesar disso, desfrutava de grandiosa e invejável popularidade.
Breve perfil
Era professor de História da Universidade Federal do Piauí. Começou sua vida pública como vereador de Teresina, no final dos anos 1950. Foi vice-prefeito da capital na década de 1960.
Secretário estadual de Educação no primeiro Governo Alberto Silva (1971-1975) e prefeito de Teresina de 1975 a 1979.
Em 1982, elegeu-se deputado federal, pelo PMDB, praticamente com os votos da capital.
Voltou à Prefeitura de Teresina em 1986, com o restabelecimento da eleição para prefeito das capitais.
Como gestor público, tinha uma especial atenção pela educação e a cultura.
Em sua segunda gestão de prefeito (1986-1989), criou a Fundação Cultural Monsenhor Chaves.
Na terceira (1993-1995), eleito pelo PSDB, criou a Lei A. Tito Filho, de incentivo à cultura, inexplicavelmente abandonada há vários anos.
É dessa época também a Casa da Cultura de Teresina, abrigo dos acervos do jornalista Carlos Castello Branco e do fotojornalista José Medeiros. O espaço foi criminosamente desmontado na gestão passada.
Também são desse período o Balé da Cidade e a Orquestra de Câmera, que viria a se transformar na Orquestra Sinfônica de Teresina.
A escolha dos auxiliares
“Quando vou escolher um auxiliar, penso apenas não uma ou duas vezes. Penso dez vezes. Se ele falhar, fui eu quem falhei”.
Era assim que explicava o seu critério particular de escolha dos assessores, em sua esmagadora maioria recrutados dos quadros técnicos.
Quando notava que um ou outro secretário não estava bem, ele se mudava para dentro da secretaria, para lhe dar apoio, até a pasta funcionar a contento.
Foi por este tipo de escolha que, apesar do abalo provocado pela sua inesperada morte, a gestão por ele iniciada em janeiro de 1993 tocou sem sobressaltos os projetos planejados para o período.
Sob a liderança do prefeito Francisco Gerardo, um engenheiro escolhido a dedo como seu vice, em homenagem aos servidores da Prefeitura, a gestão foi concluída sem traumas.
Isso apesar da inapetência de seu sucessor para o exercício do poder ou da política.
Vitória improvável
A equipe uniu-se de tal forma, e a cidade compreendeu o esforço coletivo para levar adiante a missão interrompida pelo destino, que o grupo do prefeito acabou vencendo a eleição de 1996.
Os tucanos derrotavam nas urnas, pela segunda vez, um mito da política piauiense, o ex-governador e ex-senador Alberto Silva (PMDB), então deputado federal.
E ganharam o pleito com um candidato desconhecido, o economista e professor Firmino Filho, ex-secretário municipal de Finanças.
Ele disputava a primeira eleição de sua vida.
Uma escola
Wall foi um líder imbatível em todas as eleições que disputou em Teresina. Fez escola como gestor e como político.
Seu grupo venceu todas as eleições em Teresina desde 1985. Nenhuma outra capital brasileira registra tal proeza.
Wall ganhou as eleições de 1985 e 1992, e comandou a vitória de 1988, com a eleição do prefeito Heráclito Fortes; Firmino venceu em 1996, 2000, 2012 e 2016; Silvio Mendes ganhou em 2024 e 2008.
Esse grupo só conheceu uma única derrota, em 2020. A cidade viu, a seguir, que, na verdade, quem perdeu foi ela. e foi buscar um remanescente do grupo de Wall, Silvio Mendes, para governá-la outra vez.
Trago estas memórias com emoção e saudade do querido mestre, na passagem dos 30 anos de seu silêncio.
Fonte: zozimotavares.com