Durante minha pesquisa para o mestrado, foi a seu Agapto a quem recorri. Aproveitando-me dos minutos que antecediam a uma de minhas viagens à cidade de Milton Brandão, onde lecionava à noite, enquanto aguardava o carro que me levaria para lá. Resolvi entrar ali na garapeira para tomar um bom copo de garapa de cana-de-açúcar. De início recebi um elogio do homem:
–
Muito bem, professor, ‘garapa’ é como se diz. Nada de ‘caldo’ de cana.
E enquanto me deleitava com o copo de garapa acompanhado por um pastel, deparei-me com aquele homem já de idade, alto, pele muito branca, meio calvo, feições graves, mas de uma alma serena. Estava a moer uns talos de cana para outras duas ou três pessoas que também tinham resolvido tomar garapa naquele momento.
-Seu avô, Bidoca Getirana, foi um homem muito culto, professor, disse-me ele. Era meu amigo. Um grande espírita. Fomos nós com mais um bando de gente que fundamos o Centro Espírita de Umbanda Pedro de Alcântara, como o senhor deve saber.
Sim, eu sabia, conhecia a história toda. E foi aí que ele me contou exatamente um episódio vivenciado por ele e pela esposa na década de 1960, numa noite de maio, lá para as bandas da Serra dos Matões, nas proximidades do garimpo Boi Morto. Luzes piscavam, estalidos cortavam a caatinga seca, pedradas vindo não sei de onde, lufadas de ar no pé do ouvido, essas coisas…
-De arrepiar. O senhor sabe, professor, coisas de lugar onde tem opala. Disse.
Eu ri e disse que também havia tido uma experiência parecida para aquelas bandas de lá. O homem ia falando. Voz grave, pausada, com toda atenção e paciência para comigo. Enquanto conversávamos abelhas surrupiavam desavergonhadamente algumas gotas de garapa que ainda pingavam das engrenagens da moageira.
-Tem muita gente para quem a opala é perdição, assim como tem aqueles que enriquecem com ela. Depende de cada um. A opala apenas revela por fora o que cada um é por dentro. Mas o mundo tá mudado. O senhor logo não vê que esse mundo de hoje está tudo que é uma velocidade maluca. Já houve um tempo, espie mesmo, que se levava quinze dias para ir daqui pra Teresina, professor. E seu Agapto soltou uma gaitada gostosa. Quinze dias, espie mesmo!
Passou a mão pela cabeça ajeitando seu cabelinho ralo e branquinho e continuou falando:
– Já houve um tempo que eles pegavam picumã e botavam em cima de ferida braba e que para picada de abelha se usava barro molhado. Passou as mãos pelo rosto e os dois olhinhos miúdos e verdes pareciam vislumbrar outras eras.
Seu Agapto ia falando coisas encadeadas numa lógica de mundo de quem chegava aos noventa e poucos e, que, portanto, parecia não se importar mais com a maneira como essas coisas se encontravam presas na teia do tempo. Ia lá e as arrancava com as picaretas da memória, da saudade e da experiência e as trazia para diante dos olhos como gemas de opala rara.
As coisas ao nosso redor na vendinha de seu Agapto também haviam se calado para escutá-lo. Éramos nós (eu os outros três), a moageira, os copos, as jarras, as abelhas e as canaletas de canas-de-açúcar metidos num silêncio profundo, inclinados em reverência para o mundo que jorrava da alma daquele homem.
Foi a última vez que o vi. Partiria brandamente dias depois, em 2008, para os campos do senhor.
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ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor aposentado do estado (ainda leciona na rede municipal de educação), poeta e escritor. Presidente da APLA – Academia Pedro0segundense de Letras e Artes, membro da UBE-PI, ALVAL e do IHGPI. Formado em Letras pela UFPI, onde também Fe mestrado. Membro fundador do Coletivo P2. Pertence aos coletivos ‘Amigos da Literatura’ e Coletivo Literário de São Benedito, CE. É autor, dentre outros livros de “Debaixo da Figueira do Meu Avô” (Livraria Entrelivros, Teresina). Atualmente prepara três novos livros, dente estes “História, Geografia e Literatura de Pedro II, Piauí”. Escreve às quintas-feiras para o Portal News Piauí.
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