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sexta-feira, novembro 8, 2024
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A Estética da Cruviana I (*)

Sem propriamente saudosismo, mas é fácil constatarmos que as crianças de hoje não sabem (salvo raríssimas exceções) o que é realmente uma noite estrelada. Um rio correndo manso com sapos coachando às suas margens. Um nascer do sol por detrás de uma serra.

 

Mas, sim, ainda é possível oferecer a elas alguma dessas maravilhas da natureza. É famosa a história de um menino chegado de São Paulo em uma cidadezinha do Piauí, com os pais, e dizendo em alto e bom som, apontando com o dedo em riste:

– Pai, mãe, olhem o cachorrão, olhem o cachorrão!!!

O cachorrão era um jumento.  Como pesquisador e autor, vejo na contação de histórias uma maneira efetiva e lúdica de apresentar, dentre uma variedade de temas, o mundo natural às crianças. Se pudermos aliar isso a uma teoria, a uma visão de mundo, melhor ainda. Vamos, pois, à teoria da  cruviana.

O título acima não é em nada original. O poeta e compositor gaúcho Vitor Ramil já fez referências a uma certa “estética do frio”, com a ressalva evidente e cristalina de que não se trata de restabelecer o velho paradigma entre cultura e clima.

Eu, do meu lado, de comedor de farinha e carne de bode, de chupador de umbu-cajá e tomador de Serrana, de descansador de rede de linha, de bebedor da água do Piarapora, de apreciador das mulheres da Terra da Opala; eu, cá com meus botões e borbotões de espasmo e espanto, fazedor de promessa à Santa Mari’Alves, e de poemas às meninas da vida; eu tremedor de medo dos velhos coronéis, mas, acima de tudo, tudinho mesmo, acreditador da força e do poder que esse povo dito tem. Lanço, aqui e agora, resumidamente, a estética poética  da cruviana.

Dizer ESTÉTICA DA CRUVIANA significa dizermo-nos nós da gema, que é outra forma de dizer que estamos acostumados com essa frialdade do clima, mas não da alma desse povo hospitaleiro, acreditador das coisas lá do céu e, ao mesmo tempo, danado de vivenciador das coisas de cá de baixo, da beira do caldeirão aceso da vida, essa mesma vida vivida na pele mesmo da ferida instalada e estalada no pingo do mei’dia.

Esse mesmo povo que poetiza  as belezas da natureza enquanto a entope de lixo até Deus do céu, Nosso Senhor, dizer chega, filhos ingratos!!!. Esse mesmo povo que cospe no prato que lhe serviu de artefato para receber a comida que lhe desceu para o bucho e que depois de algum tempo virará merdamente outra coisa sendo sempre, contudo, a mesma e única coisa de sempre, sem nome, amém. Amem!

A CRUVIANA está instalada sob nossa pele-povo, interconectada ao sistema neural, ela entra pelos orifícios do corpo, pelos nossos gargumilhos, gurgumis, como havera de dizer essa gente toda atordoadinha pelas visagens de outrora do Tamboril, do Largo do Cruzeiro, das bandas do cabaré da Beleza, das bandas do Morro do Gritador, que assim seja.

A estética da cruviana é outra forma, outra banda de compreendermos quem somos nós, os ditos Zé povo vindo de não sei onde para lugar algum e que, por isso, inventamos de inventar que a tal cruviana nos pertence como a sede à água, como o fogo à chama.

Cruviana somos nós mesmos quando saímos de nossos corpos e revisitamo-nos de uma forma que não conseguimos expressar. Apenas sentir. Creio que em tempos vindouros haverá de ainda existir o “Festival da Cruviana”. 

(*) Frio excessivo, chuvisco; chuva leve e passageira. Vento muito gelado que aparece no decorrer da madrugada. É muito comum a ocorrência do fenômeno da cruviana no município de Pedro II, PI. Neste ano, o Festival de Inverno promete muita cruviana.

ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor, poeta e escritor. É autor de vários livros, dentre estes, “Debaixo da Figueira do Meu Avô”. Pertence à APLA, ALVAL, IHGPI. Escreve às quintas-feiras para esta coluna. Durante o Festival de Inverno de Pedro II estará com um stand na praça.

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