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quarta-feira, novembro 27, 2024
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Aos 92 anos, o lendário Magro de Aço do futebol vive

TERESINA, Brasil – Quando você conhece Carlos Said pela primeira vez, você fica impressionado com sua voz – ou com a falta dela. Mais de sete décadas atrás do microfone em milhares de jogos de futebol danificou suas cordas vocais. Ele soa como o substituto do personagem principal do filme Poderoso Chefão. No entanto, as tubulações vocais enfraquecidas não diminuíram o homem que é uma das figuras mais queridas nesta cidade de 1,2 milhões de habitantes no Nordeste do Brasil. Pelo contrário, ele possui um nível de energia e entusiasmo que desmente os seus 92 anos.

 

Estamos sentados no pátio de sua modesta casa no centro da cidade, onde ele mora há 50 anos. [Embora sejamos primos distantes – nossas bisavós eram irmãs – nunca nos conhecemos até hoje.] O bairro, antes residencial, hoje é um bairro comercial. Resta apenas uma casa – a de Carlos Said. Apesar dos protestos da sua família, ele recusou-se a mudar-se. Esta teimosia, firmemente enraizada no DNA do homem, frustrou os seus filhos, amigos e colegas ao longo dos anos. Mas é também uma razão fundamental para o seu sucesso – e sobrevivência.

Um homem inferior teria sido enterrado há muito tempo.

À medida que nos aprofundamos na história de Carlos Said, uma coisa ficou clara: é difícil discernir entre o que é fato e o que foi consideravelmente embelezado.

O próprio Carlos Said é o primeiro a admitir que há alguma sombra entre o que é real e o que não é.

“Há o Carlos Said, o homem. E depois há o mito”, diz ele, quase caprichoso em sua fala.

“Depois de todos esses anos, às vezes não tenho certeza de qual é qual.” E tem mais isto: em um país onde figuras famosas do esporte costumam ser conhecidas por um único nome – como Pelé – Carlos Said sempre usa dois nomes.

Primeiro, Futebol

O pai de Carlos Said, Solomon, imigrou do Líbano para o Brasil em circunstâncias incomuns. Abraham Said [Sy-eed] temia que seu filho mais velho fosse recrutado para o exército turco durante a Primeira Guerra Mundial. Então ele viajou com seu filho para Teresina, ficou uma semana e voltou para o Líbano, deixando Salomão se defender sozinho. Como muitos imigrantes libaneses aqui naquela época, Solomon tornou-se mascate. Casou-se com uma libanesa e teve oito filhos, sendo o sexto Carlos Said. O conflito entre pai e filho começou cedo. Carlos Said descobriu o futebol, esporte nacional, e ficava dia e noite nas ruas com os amigos praticando o esporte que amavam. Quando ele entrou na adolescência, seu pai – possuindo a mentalidade de um imigrante trabalhador – estava farto daquilo.

Carlos Said lembra: “Ele me disse: ‘Pare de jogar. Leve sua vida a sério.’” Às vezes, o cinturão de seu pai ‘falava’.

Mas Carlos Said, sempre teimoso, continuou jogando. E desenvolveu um plano. Ele se lembra de ter ouvido a Copa do Mundo no rádio em 1938 e ficou hipnotizado pelo locutor. Embora tivesse apenas 7 anos na época, a experiência permaneceu e ele finalmente pensou que poderia de alguma forma combinar futebol e rádio como carreira profissional. Não demorou muito para Carlos Said.

Aos 14 anos, ele convenceu o dono de um sistema de som conectado por cabo a todas as praças da cidade para que ele anunciasse resultados de jogos de futebol e reportagens. [Na época não existiam rádios em Teresina.]

Carlos Said sorri amplamente ao recordar o seu sucesso inicial. “No início, eles me disseram: ‘Ninguém está interessado em notícias de futebol’. Mas continuei pressionando e finalmente eles cederam. Eles me deram cinco minutos para cada transmissão.”

Aos 15 anos, ingressou em um clube de futebol amador chamado River. Seus companheiros mais experientes lhe disseram que ele seria o goleiro, uma posição de pressão que ninguém mais queria. Ele tinha um pouco menos de 1,80 metro de altura e pesava cerca de 60 quilos. Mas tinha pernas de girafa e braços igualmente longos. Carlos Said tinha um talento natural para manter as bolas de futebol fora da trave de jogo.

“Percebi”, diz ele, “que tinha um dom”.

A equipe foi um enorme sucesso. Em suas 18 temporadas no River, terminando em 1963, o time conquistou sete campeonatos. Pergunto ao Carlos qual era o seu salário nesses anos.

“Sem dinheiro!” ele diz, seus braços agitando-se descontroladamente como os de um maestro. “Aqueles dias foram gloriosos. Os melhores momentos. Praticando o esporte que eu amava. Ganhando. Era tudo uma questão de amor pelo jogo.”

Estou surpreso com o nível de energia do homem. A temperatura neste dia está chegando a 38 graus. A umidade correspondente deixou minha camisa encharcada de suor. Carlos Said, vestindo camiseta de futebol branca, shorts marrons e sandálias, está seco como em um dia ensolarado de primavera nas montanhas. Percebo que todas as janelas da casa térrea estão abertas.

“Sem ar condicionado?” Eu pergunto.

Carlos disse: “Não preciso disso”.

Em 1948, quando Carlos Said tinha 17 anos, foi inaugurada a primeira emissora da cidade, a Rádio Difusora. Ele foi contratado para fazer pequenas reportagens esportivas. Dois anos depois, ele estava ao microfone na transmissão do primeiro jogo de futebol em Teresina. Permaneceu na Difusora até 1962, quando foi contratado pela muito maior Rádio Pioneira, um novo empreendimento apoiado pela Igreja Católica local. Carlos Said foi nomeado diretor de esportes e jornalismo. Apesar do prestígio dos cargos, seu salário era minúsculo. Seu pai permaneceu chateado.

Para apaziguar Solomon – temporariamente – Carlos Said matriculou-se na faculdade de direito na universidade local. Escolheu Direito, não porque quisesse exercer a profissão, mas porque era o único curso oferecido na época.

Formou-se em 1956. No ano seguinte, seu pai mudou-se com a família para São Paulo, 2.650 quilômetros ao sul, onde havia mais oportunidades. Carlos Said, então com 26 anos, recusou-se a juntar-se a eles, surpreendendo o pai. Ele se lembra da última conversa entre eles.

“Meu pai me disse ‘Você não vai colocar comida na mesa se você joga futebol’. Eu disse a ele: ‘Pai, vou fazer meu trabalho futebol e um dia você verá que eu consegui sustentar minha família.'”

O Acidente

Como se precisasse, a saída da família despertou a motivação de Carlos Said. Ele lembra: ‘Fiquei triste, mas tive que aceitar a realidade de estar sozinho e seguir em frente com minha vida’.

Em pouco tempo, casou-se com Rochelane Fortes, constituiu família, voltou à escola para se formar em história e foi contratado por diversos jornais locais para fazer reportagens sobre futebol e outros esportes – além de suas funções de radiodifusor.

Em 1964, aos 33 anos, alcançou um nível de fama que tornou Carlos Said um nome conhecido em quase todos os lares, não apenas em Teresina, mas em todo o estado do Piauí. Mas como muitas vezes acontece na vida, num só momento tudo virou de cabeça para baixo. No dia 2 de março daquele ano, enquanto se deslocava na van da Rádio Pioneira para cobrir um grave acidente, ele próprio se envolveu em um acidente. Seus ferimentos foram tão graves que ele recebeu a última cerimônia [extrema unção] depois que os médicos disseram que havia poucas chances de ele ser salvo. Seus fãs fizeram vigília fora do hospital e de sua casa, presumindo que ele havia morrido. Espalhou-se a notícia de que Carlos Said, embora gravemente ferido, de alguma forma fez uma reportagem ao vivo do local do acidente, durante a qual disse: ‘Acabei de sofrer um acidente a caminho de um fato, para relatar um acidente. Estou quase morto. Mas a Pioneira não para!’

Refletindo, Carlos Said diz não ter lembrança do acidente ou da suposta transmissão ao vivo. Mas o resultado é claro: ‘Foi aí que começou a lenda de Carlos Said’.

De alguma forma, ele sobreviveu, mas permaneceu hospitalizado por um ano. Os fãs que compareceram para visitá-lo ficaram horrorizados ao ver seu corpo quebrado. Um deles disse, alto o suficiente para que outros ouvissem: ‘Se aquele homem voltar a andar, será o Magro de Aço’.

Voltar a caminhar, ele logo conseguiu. A lenda cresceu. E o apelido dado a ele pelo torcedor desconhecido pegou. Da sua cama de hospital no quarto 76, Carlos Said abriu uma espécie de escritório. Um de seus jornais entregou uma máquina de escrever. Ele escrevia 33 linhas por dia para uma coluna chamada 33 Linhas. A Rádio Pioneira dotou-o de equipamento de radiodifusão. Ele monitorou eventos de futebol por rádio e fez reportagens ao vivo. Se não bastasse, escreveu um livro sobre a história do futebol no Piauí. Seus amigos de futebol lotaram seu quarto para conversar sobre negócios profissionais. Certa vez, no meio de um jogo importante, houve uma disputa entre os árbitros por causa de uma regra. O jogo foi interrompido. Foi feita uma chamada para o hospital: Carlos Said foi convidado a intervir. Com um conhecimento enciclopédico das regras do jogo, resolveu a questão e o jogo recomeçou.

Quando finalmente saiu mancando do hospital – com a perna direita cinco centímetros mais curta que a esquerda – Carlos Said sabia que seus dias de jogador de futebol haviam acabado. Mas a sua carreira, bem como a sua personalidade pública no seu estado natal, subiram para a estratosfera.

Os anos de Glória

Quando os heróis retornam dos mortos, eles são tratados com um nível de admiração e respeito que meros mortais não conseguem imaginar. Em todos os lugares que frequentava, Carlos Said tinha um público admirador lhe esperando. Embora gostasse da atenção, o que ele realmente queria era voltar à sua vida normal. Eventualmente, foi o que ele fez.

Mas o que era normal para alguns não era nada para Carlos Said. Ele dava aulas de história pela manhã. Passava as tardes na Rádio Pioneira e escrevia para diversos jornais. Depois do trabalho, ele se encontrava com seus muitos amigos para jantar e se divertir em um cabaré local – uma tradição brasileira de antigamente. Ele chegava em casa tarde da noite. Rochelane estava acordada. Seus cinco filhos – duas meninas e três meninos – estavam dormindo. As manhãs de domingo eram para a família. Nas tardes de domingo transmitia partidas de futebol com seu sempre presente companheiro Didimo de Castro.

Os anos passaram. A fama de Carlos Said cresceu. A questão do homem versus mito também continuou. Um dia, em uma partida de futebol fora de casa, os torcedores do time da casa brigaram com os torcedores de Teresina, que estavam em considerável desvantagem numérica. A briga se espalhou para fora do estádio e estava prestes a se tornar violenta. De repente, uma figura solitária emergiu da multidão de Teresina. Carlos Said, descendo da cabine de transmissão, assumiu postura de combate e, supostamente, teria dito: “Meu nome é Carlos Said. Eu sou o Magro de Aço. Vocês vão ter que passar por mim para chegar até meus amigos”. Em poucos minutos, a confusão se dissipou.

Pergunto a Carlos Said: “Isso é verdade?”

Ele sorri e diz: “Como eu disse antes, o que é fato e o que é ficção são uma confusão para mim agora”.

Em meados da década de 1980, um único acontecimento inquestionável ocorreu sem aviso prévio: a voz de Carlos Said desapareceu. Ele não conseguia pronunciar uma única palavra discernível. Os anos de conversa ininterrupta cobraram seu preço.

“Perdi minha arma mais importante”, lembra ele.

Angustiado, ele se afastou da emissora de rádio e da faculdade onde lecionava. Ele escreveu notas para se comunicar com amigos e familiares. Com o tempo extra aumentou seu trabalho jornalístico, focando em matérias históricas, das quais nutria muito gosto.

Um pouco de leveza voltou em 1987, quando uma das escolas de samba locais, Sambão, produziu seu samba-enredo para a celebração anual do Carnaval tendo como tema a vida de Carlos Said. Ele foi o destaque dos dois dias de desfile e Sambão conquistou o primeiro lugar na competição com outras escolas de samba.

Sua incapacidade de falar não diminuiu a importância do dia.

“Foi magnífico”, diz ele. “O evento número um da minha vida. Onde quer que eu fosse, ouvia a música sendo tocada.”

Demorou dois anos, mas sua voz finalmente voltou – embora em uma versão menos potente do que a original. Mesmo assim, Carlos Said retomou as funções de comentarista, tanto na estação de rádio como na cabine do estádio com Didimo, e também voltou a lecionar.

“Foi”, diz ele, “uma felicidade inacreditável. Meus fãs ficaram maravilhados ao ouvir minha voz novamente.”

Carlos Said hoje

Estamos conversando há mais de uma hora. Em vez de cansado, como seria de esperar de um homem da sua idade, Carlos Said parece mais energizado do que quando começamos. Recapitular uma vida rica e variada pode fazer isso com uma pessoa.

Ele deixou de lecionar em 1992 e encerrou a carreira jornalística no final dos anos 90. Permaneceu na Rádio Pioneira fazendo reportagens diárias e cobrindo jogos de futebol aos domingos até 2020, encerrando uma carreira de 75 anos.

Ele diz que sente falta da docência, a mais gratificante de suas profissões pela quantidade de alunos que impactou, mas não do resto. Fãs e amigos passam por aqui de vez em quando para conversar sobre esportes ou se encontrar para almoçar. Ele tem uma família grande e unida que inclui netos e bisnetos. Às vezes eles se reúnem para as refeições de domingo. Sua filha mais velha, Soraya, mora com ele [correção: Rochele mora com ele], atendendo suas necessidades. Ele aprecia muito a presença dela.

Um dia típico? “Eu ouço rádio. Assisto TV. Leio um pouco. Como demais. E durmo muito bem”, diz Carlos Said.

Em termos de saúde, ele está em boa forma, mas precisa de uma bengala para se locomover. O aperto de mão do Magro de Aço é firme, revelando uma força surpreendente.

Sua fama parece segura. Seu filho, Gustavo, professor de jornalismo e mídia na mesma universidade onde Carlos Said também lecionava, publicou dois livros sobre o pai – um é uma biografia e outro é um relato ilustrado do acidente e de sua recuperação.

Ao longo dos anos, sua imagem apareceu em outdoors por toda a cidade, seu lendário apelido em letras fortes e brilhantes. Um ginásio adorna seu nome.

No início deste ano, uma trupe de teatro local apresentou uma peça cobrindo sua carreira. Ao final, o ator principal encontrou Carlos Said na plateia. “Estou honrado por ter representado você”, disse ele. Carlos brincou e disse: “Fiquei feliz por ser mais jovem por um dia”.

Ao recapitular o acontecimento para mim, ele foi mais sério. “Não há palavras para descrever minhas emoções dessa experiência.”

Eu pergunto se ele tem algum arrependimento. Imediatamente, ele chora e começa a falar sobre sua falecida esposa, Rochelane, que morreu de um ataque cardíaco em 1998.

“Ela era tudo para mim. Eu estava ausente o tempo todo, mas ela estava sempre lá, esperando por mim. Ela acreditou em mim. Ela me encorajou e apoiou quando ninguém acreditava que eu pudesse ser um bom jornalista. Ela me disse: ‘Faça isso. É o seu sonho. Eu cuido dos filhos.’”

Com as emoções sob controle, Carlos Said diz que não se arrepende de sua carreira. “Tenho ótimas lembranças da minha vida. Valeu a pena. E eu faria tudo de novo, se pudesse, da mesma forma.”

Eu pergunto: “o que seu pai diria se tivesse vivido para ver seu sucesso?” Isso evoca uma grande risada de Carlos Said.

“Ele definitivamente continuaria dizendo: ‘Pare de jogar futebol!’”

Nota do editor: Primeira de uma série de uma viagem de reportagem ao Brasil de 21 a 27 de outubro de 2023

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