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‘Brennand’ EP1: Áudios revelam método de Thiago, da sedução à agressão

A agressão pública do empresário Thiago Brennand a uma mulher numa academia, em agosto de 2022, trouxe à tona uma cadeia de outros crimes e acusações contra ele. A partir de áudios exclusivos, documentos e entrevistas, o podcast “Brennand” revela detalhes do modus operandi do milionário, preso desde abril em São Paulo.

 

Você pode ouvir o primeiro episódio completo, “A Força de um Sobrenome”, no arquivo acima. O episódio conta em detalhes o lado sedutor e galanteador de Brennand, que, segundo as vítimas, usava para conquistá-la e, depois, agredi-las.

A história é ilustrada com relatos de K., uma produtora pernambucana radicada nos EUA, que o conheceu pelo Instagram no fim de julho de 2021. No mês seguinte, ela viajou a São Paulo para encontrá-lo pessoalmente. Durante os dias em que estiveram juntos, no entanto, K. diz que foi mantida em cárcere privado, agredida e estuprada por Brennand.

O podcast narrativo é apresentado pelo jornalista do UOL Mateus Araújo, que divide a reportagem com Juliana Sayuri. Os episódios vão ao ar sempre às quintas-feiras.

“Brennand” já está disponível no YouTube do UOL Prime, Spotify, Apple Podcasts, Amazon Music, Deezer e em todas as plataformas de podcast. Você pode ouvir o episódio completo no arquivo acima e ler a transcrição dele abaixo.

‘Brennand’

Episódio 1 — A Força de um Sobrenome

Aviso. Esse programa tem linguagem forte, relatos de abuso sexual e pode não ser adequado para todos os públicos.

TRECHO DE REPORTAGEM DE TV: Num cenário como esse aqui, num shopping de luxo, que um empresário poderoso se tornou alvo de uma investigação, aqui ele foi flagrado numa cena em que aparece agredindo uma mulher.

TRECHO DE REPORTAGEM DE TV: A própria empresa disse que está colaborando com as investigações e que repudia e se solidariza com a modelo Helena Gomes. As imagens de câmera de segurança mostram o momento em que ela é agredida pelo empresário e também depois algumas mulheres se aproximam para evitar o pior. O que chama a atenção é que ainda não se sabe o que teria motivado, se é que se pode falar de um ato tão covarde quanto esse.

MATEUS ARAÚJO: A história era a seguinte: um empresário agrediu uma modelo na Bodytech, academia que fica no Shopping Iguatemi, nos Jardins.

Com mensalidades entre R$ 1.300 e R$ 1.600, a academia é frequentada pela alta sociedade paulistana. No site, por exemplo, se vende como “um projeto inovador, que une sofisticação e conforto a um serviço diferenciado”. Os alunos têm acesso a salas de maquiagem, massagem e fisioterapia, além de open bar de isotônicos, bebidas pós-treino e cosméticos diversos.

O cenário glamouroso destoava completamente da brutalidade do que tinha sido filmado pelas câmeras de segurança do lugar. No vídeo, após discutirem verbalmente, um homem alto e musculoso aparece empurrando e puxando os cabelos de uma moça morena, magra e bem menor que ele.

Esse não era exatamente o tipo de assunto que eu tava cobrindo no UOL. Naquela época, eu tava completamente imerso na apuração de denúncias de assédio e tortura contra crianças e adolescentes numa comunidade religiosa.

Só que três coisas sobre esse episódio da academia chamaram muito a minha atenção e me fizeram querer entrar de cabeça nessa história.

Primeiro: a violência absurda e injustificada. Segundo: a certeza de impunidade daquele agressor, que não se preocupava em ser flagrado pelas câmeras da academia. E, por último e acima de tudo, o nome completo dele. Mas eu vou deixar que ele mesmo se apresente.

THIAGO BRENNAND EM VÍDEO PUBLICADO POR ELE NO YOUTUBE: Quem é Thiago Antônio Brennand Tavares da Silva Fernandes Vieira ou Thiago Antônio Fernandes Vieira? Você sabe responder? Acho que no momento é um inimigo público, talvez um sociopata, talvez um estuprador. Será mesmo?

MATEUS ARAÚJO: Eu sabia quem ele era. Ou melhor, sabia de onde ele vinha — não sei se dá pra perceber fácil pelo sotaque, mas eu e ele somos pernambucanos. E duvido me mostrarem um pernambucano que nunca tenha ouvido os tais sobrenomes de Thiago.

De onde eu venho, Brennand e Fernandes Vieira são praticamente sinônimos de riqueza, patrimônio e tradição. Ambas são consideradas duas das famílias mais ricas e influentes de todo o Recife, com uma fortuna que ultrapassa a casa dos bilhões.

E, até aquele dia de agosto, esses nomes costumavam aparecer somente em colunas sociais ou quando eram celebrados por suas contribuições na cultura e na economia da cidade.

São famílias distintas, sim. Mas, acima de tudo, são famílias discretas. Só que, por causa de Thiago, isso tava prestes a mudar.

JULIANA SAYURI: No fim de julho, o Mateus conseguiu acesso a mais de 6.000 páginas de processos judiciais envolvendo Brennand. Esse material tinha boletins de ocorrência, interrogatórios, oitivas com testemunhas e informantes, e vários prints de mensagens.

MATEUS ARAÚJO: Essa é Juliana Sayuri, minha colega e editora, que vai aparecer aqui vez ou outra pra me ajudar a contar essa história — afinal, é com ela que eu assino as reportagens sobre esse caso.

Pra entender, de fato, quem era aquele milionário de sobrenome conhecido no Recife, a gente começou a levantar a ficha dele. Não demorou pra gente encontrar relatos de padrões de comportamento agressivo contra pessoas que ele considera de alguma forma “inferiores”.

Com o pouco que a gente sabia até ali, já dava pra afirmar que o cara tinha um histórico violento, era chegado numa confusão. E episódios que confirmavam isso com mais convicção logo apareceram.

JULIANA SAYURI: Entre essas mulheres estavam, enfim, uma suíça, uma russa, uma americana, duas misses, muitas modelos, e K.

MATEUS ARAÚJO: Mas nem esses casos preparavam a gente pro que viria a seguir. Logo de cara, percebemos que o desafio ia ser grande: a gente começou a ouvir relatos de casos antigos, alguns até com quase 20 anos, que passaram despercebidos pela Justiça e pela imprensa. Além do mais, depois que o caso da academia ganhou repercussão, descobrimos outros processos contra ele. A maioria em sigilo. Dava pra ter uma ideia do que ele tinha feito contra as vítimas em casos isolados, mas nunca tinha uma história de agressão com começo, meio e fim.

Até que, depois de quase um ano acompanhando o caso Brennand, ouvindo vítimas, testemunhas e pessoas ligadas a ele, a gente conseguiu acesso a provas e processos com detalhes até então inéditos na imprensa. Inclusive com a admissão de Thiago, de ter estuprado uma mulher.

E, nessas mais de 6.000 páginas e mais de 10 horas de áudios, tava o caso de K., uma mulher de 39 anos que denunciava Brennand por agressão, estupro e cárcere privado.

JULIANA SAYURI: E por que que o caso K. virou tão importante, ficou tão importante pra gente? Porque lendo todo esse material, todas essas milhares de páginas, a gente entendeu que K., na verdade, era a chave pra entender quem é Brennand.

MATEUS ARAÚJO: O depoimento dela revelava o passo a passo do modus operandi desse agressor.

JULIANA SAYURI: E K. pra gente foi o calcanhar de aquiles de Brennand porque tem raízes em Pernambuco.

MATEUS ARAÚJO: Brennand pode ter ficado conhecido nacionalmente após o caso Bodytech, mas foi com K., e a história dela, que o castelo de cartas de Thiago começou a cair.

VINHETA: Eu sou Mateus Araújo. E esse é “Brennand”, um podcast do UOL Prime. A agressão pública do empresário Thiago Brennand a uma mulher numa academia traz à tona uma cadeia de outros crimes e acusações dos quais ele sempre conseguiu sair ileso. Até onde vai a impunidade de um milionário? Episódio Um: “A Força de um Sobrenome”.

MATEUS ARAÚJO: No dia 2 de setembro de 2021, K. atendeu a uma ligação no celular.

THIAGO BRENNAND: Finalmente, né?

MATEUS ARAÚJO: Do outro lado da linha, estava Thiago Brennand.

K.: Desculpa. Eu não tô sozinha
THIAGO BRENNAND: Caraca…
K.: Não posso ficar falando. Não tô sozinha.

MATEUS ARAÚJO: K. tinha chegado ao Recife depois de passar três dias na casa de Thiago, em São Paulo.

K.: Como que você tá?
THIAGO BRENNAND: Porra, que mistério é esse, não tá sozinha? O que que há? Me conte.
K.: Eu não sei nem o que… O que te falar. Eu acho que eu tô ainda, eu tô ainda anestesiada com tudo isso, eu juro por Deus.

MATEUS ARAÚJO: Pra entender por que ela não queria continuar essa conversa, é preciso primeiro descobrir como a história deles dois começou. K. é uma produtora de cinema recifense, que mora em Miami desde a adolescência. A gente vai chamar ela assim, de K., pra preservar sua identidade. Foi de casa, nos Estados Unidos, que ela recebeu a notificação de um tal Thiago Brennand tentando enviar uma DM pra ela.

K.: Ano passado, ele me abordou no Instagram e, no momento, eu não sabia quem ele era.

MATEUS ARAÚJO: Esses áudios que a gente vai ouvir agora são inéditos e exclusivos do UOL. Eles fazem parte da oitiva de K. ao Ministério Público.

K.: Então eu não dei bola, nem respondi. Até ele se apresentar e eu prestar atenção no nome e vi que era a família Brennand. Aí eu falei, quem que deve ser, e ele se apresentou: eu sou Thiago Brennand, irmão do Brunão, de “tananam”, e aí dei abertura pra falar com ele.

MATEUS ARAÚJO: Apesar de ter nascido no Recife, depois de ter ido morar fora do país, K. contou em depoimento que só voltou à cidade natal umas duas ou três vezes. Ela não conhecia Thiago, mas conhecia o restante da família dele.

K.: Eu conhecia a família toda dele, frequentávamos os mesmos lugares, as mesmas academias, mas eu não tinha informação sobre o Thiago. O que eu sabia é que ele era irmão do Bruno, da Marília e do Zé e, pra mim, eles são uma família maravilhosa. Então eu achava que ele também fosse uma pessoa boa por ser irmão deles, né?

MATEUS ARAÚJO: Além do sobrenome conhecido, que fez K confiar nele, Thiago também tinha uma imagem de bom moço nas redes: estava sempre acompanhado do filho em viagens e no dia a dia, fazia referências a autores como João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna… Era polido, falava outros idiomas, se dedicava aos estudos de violão e bateria, além de praticar com devoção o jiu-jítsu, esporte no qual é faixa-preta.

THIAGO BRENNAND EM VÍDEO NO YOUTUBE: Um cidadão que vocês morrem de inveja. A comunistada, então, morre de inveja: branco, heterossexual inegociável, inegociável! Não tem cis, cis é o caralho, rapaz. Entendeu? Armamentista? Óbvio! Conservador, sempre! Não gosto de falar direita, gosto de falar conservador, pela família, pela propriedade privada, pela hierarquia, pela disciplina, pelo respeito ao próximo, pela hombridade por colocar o homem no seu lugar e a mulher também. Então, vocês… O cão ladra e a caravana passa.

MATEUS ARAÚJO: Brennand nasceu e cresceu no Recife. É um homem alto, branco, forte e autoproclamado “heterossexual inegociável”. Dono de uma fortuna estimada em R$ 300 milhões, tem olhos castanhos miúdos, queixo proeminente e voz grave. Na juventude, era visto como um cara bonito, elegante e inteligente.

Thiago chegou a cursar direito na FAAP, em São Paulo, mas não concluiu o curso. Apesar disso, nas redes sociais, dizia ter feito doutorado na universidade de Oxford, na Inglaterra. Ele também viajou por mais de 50 países e diz que possui casas na Inglaterra, nos Emirados Árabes e na Rússia, onde morava antes de voltar ao Brasil no início de 2020, durante a pandemia. Nessa época, ele se revezava entre uma mansão que possuía no interior de São Paulo, em Porto Feliz, e um hotel na capital. Tudo dava a entender que K. tava diante de um cara bacana. E ela resolveu apostar nisso.

K.: Então, ali, um cavalheiro, né. Ele é uma pessoa, assim, incrível, aquele homem perfeito. Aí trocamos telefone, na mesma época, e começamos a conversar por WhatsApp e comecei a ficar encantada por ele.

MATEUS ARAÚJO: K. tinha terminado um namoro longo fazia pouco tempo. Ela é mãe e, ainda que encantada por Brennand, foi cautelosa. Avisou aos amigos mais próximos e ao sócio que estava de papo com ele. Também passou o contato dele pra babá de seus filhos, com quem ele falava frequentemente via Facetime e costumava ser sempre muito educado e gentil. O relacionamento ia ganhando contornos de namoro e, naturalmente, o desejo de um encontro ao vivo começou a se tornar prioridade.

K.: Pensei em visitar os meus pais em Recife, meu pai sofreu um pequeno incidente com o coração, ele tava muito mal, então eu já ia visitá-lo. E o Thiago falou, não, vem então, eu te convido pra vir pra São Paulo antes, passar alguns dias comigo e eu fui, obviamente, já tava ali encantadíssima pelo Thiago.

MATEUS ARAÚJO: Thiago fez questão de comprar ele próprio as passagens de K. Então, no final de agosto de 2021, um ano antes de eu me deparar com aquela notícia sobre o ataque na academia, K. embarcou com destino a São Paulo. Ao chegar no Aeroporto de Guarulhos, K. foi recebida por Thiago. E ele não tava sozinho.

K.: Assim que eu chego em São Paulo, eram dois carros. Ele dirigindo um carro, que era uma Porshe e o motorista, o segurança dele, dirigindo um carro atrás.

MATEUS ARAÚJO: O segurança é Daniel Cossani, um policial militar que também trabalhava como personal trainer e, segundo algumas vítimas, uma espécie de faz-tudo de Thiago. Inclusive, Daniel atualmente é alvo de sindicância na PM por causa dessa “dupla jornada”. Na oitiva à Justiça, Daniel contou como foi chamado para prestar o serviço de buscar K. no aeroporto.

DANIEL COSSANI: Ele me pediu apoio para buscá-la, porque ele achou que ela viria com os filhos e tava tudo programado. Eles tavam combinando, segundo ele, que ia casar, ele apresentava já, já a apresentava como noiva dele, que ia casar, enfim, e ela tem filhos e ele falou que os filhos viriam, então ele me pediu o apoio para que buscasse em dois carros, porque um carro só não ia saber. Então esse foi o primeiro contato que eu tive com ela, na recepção dela aqui no Brasil, aqui em São Paulo, no aeroporto de Guarulhos.

MATEUS ARAÚJO: Mas não foi exatamente a presença de Daniel com Thiago que chamou a atenção de K.

K.: Assim que ele me abraçou, ele tava armado. E eu lembro que eu comentei com ele, eu falei: Por que você tá armado? Daí ele: “Ah, porque eu tô aqui no Brasil, eu não me sinto seguro?” Aí eu falei: “Mas tem segurança atrás de você, por que você tem que tá armado também?” Ele: “Aqui eu só ando armado”. Ali achei estranho, mas moro aqui já faz muitos anos, saí do Brasil com 14 anos, e eu sei que o Brasil é perigoso então, até então, eu achei estranho, mas deixei de lado.

MATEUS ARAÚJO: Ela entrou no carro e eles deram partida para Porto Feliz. Mais especificamente no Hotel Fasano Boa Vista, um condomínio de casas de campo de luxo onde Thiago morava.

K.: Na ida pra Porto Feliz, eu estava no carro com ele e, atrás da gente, o motorista dele e segurança nos seguia. E ele dirigia com uma rapidez absurda. Mas, assim, ele ia a 200 por hora. Ele ia muito rápido no carro e conversando, é… Eu senti ali, eu me senti um pouco, senti medo dele pelo fato dele tá correndo muito com o carro e tá sempre falando muito a respeito dele, o quanto de dinheiro que ele tem, o quanto ele é influente em São Paulo?

MATEUS ARAÚJO: Pouco mais de 100 quilômetros depois, eles chegaram à casa de Thiago. Na mansão, tem pelo menos três quartos — o de Brennand, o do filho dele e o quarto de hóspedes — que também é chamado de “quarto das meninas”, como mais de uma vítima relatou à Justiça

K.: Fui super bem recebida por todos eles, a [silenciado] pegou a minha mala, aí levou pra esse outro quarto.

MATEUS ARAÚJO: Antes, deixa eu fazer uma observação: você vai notar que a gente censurou os nomes de algumas pessoas. Elas são vítimas, testemunhas ou informantes nos processos. Só vamos revelar os nomes de pessoas públicas ou agentes do Estado.

Nesse áudio, K. tá falando de M., funcionária que trabalhava para Thiago fazia muitos anos. Informante em diversos processos nos quais ele é réu, M. é citada nos autos como governanta, empregada ou esteticista. Na casa, eram frequentes ainda as presenças de seguranças (entre eles, o PM paulista Daniel Cossani) e da secretária, B. que também aparece nos autos como massagista.

A gente tentou contato com eles por telefone, pra checar os seus respectivos casos e pegar o lado deles da história. Mas a resposta de M., numa ligação com Juliana, foi essa aqui:

M.: Acho que você tá ligando pra pessoa errada.
JULIANA SAYURI: O seu nome não é [silenciado]?
M.: Sim.
JULIANA SAYURI: A senhora não trabalha como governanta na casa do Thiago?
M.: Sim, mas eu nunca falei com você.
JULIANA SAYURI: Eu liguei faz cerca de um mês, um mês e meio. A gente conversou rapidinho, acho que você tava ocupada. Será que a gente consegue marcar uma entrevista?
M.: Então, eu não consigo falar agora. Eu tô bem ocupada.
JULIANA SAYURI: A senhora tá em Porto Feliz?
M.: Não. Vou ter que desligar que meu Uber tá vindo, tchau, obrigada.

MATEUS ARAÚJO: A de B.:

JULIANA SAYURI: Bom dia [silenciado]?
B.: Quem fala?
JULIANA SAYURI: Oi, [silenciado]. Meu nome é Juliana, eu sou jornalista. Tudo bem?
B.: Bom dia, Juliana.
JULIANA SAYURI: [Silenciado] tô te ligando porque eu queria conversar com você um pouquinho sobre o caso Thiago Brennand. Eu sou que…
B.: Ô, Juliana, eu vou ficar te devendo, tô trabalhando agora e não dá preu falar.

MATEUS ARAÚJO: E a de Daniel:

JULIANA SAYURI: Alô, alô, Daniel? Alô? Catorze segundos de ligação, mas ele desligou.

MATEUS ARAÚJO: Os processos aos quais a gente teve acesso têm os nomes de todos esses funcionários. Tem também relatos de que, quando levava uma convidada nova pra Porto Feliz, Thiago costumava fazer um passeio pela casa. Nessas ocasiões, ele fazia questão de exibir as coleções de obras de arte e de armas de fogo — ele afirmava que era o maior colecionador de armas táticas do Brasil. Mas, com K., ele resolveu fazer diferente.

K.: Quando cheguei na casa dele, eu tomei um banho, troquei de roupa e ele me levou pra passear no condomínio. Eu não lembro se nós almoçamos antes, eu acho que nós almoçamos e depois ele foi dar uma volta comigo no condomínio, pra mostrar o condomínio.

COMERCIAL FAZENDA BOA VISTA: Fazenda Boa Vista fica só a uma hora de São Paulo, conta com uma reserva nativa de plantas exóticas, alamedas centenárias e mais de 30 lagos. Vida boa e lazer andam lado a lado aqui, na Fazenda Boa Vista. Onde, por sinal, você vai encontrar o primeiro Hotel Fasano de campo e o spa Fasano pra você relaxar corpo e mente. Aqui você vai encontrar dois campos de golfe, assinados pelos maiores nomes do esporte: Arnold Palmer, que por sinal foi um dos maiores jogadores de golfe de todos os tempos, e Randall Thompson, designer responsável por alguns dos melhores campos do mundo. Agende sua visita e venha ver isso tudo de perto.

MATEUS ARAÚJO: Esse é um anúncio imobiliário da Fazenda Boa Vista. Pela descrição, o lugar onde Thiago morava parece o paraíso. A primeira parada do casal, no entanto, não aparece no comercial: eles foram para o estábulo do condomínio, onde Thiago, que praticava polo e hipismo, mantinha alguns de seus cavalos.

K.: A primeira coisa que ele fez, que ali já me colocou medo, foi quando nós estávamos no carro, tinha um senhor no estábulo cavalgando e ele simplesmente passou por cima da calçada e entrou no estábulo onde estava esse senhor e um cavalo. E esse senhor começou a falar assim “Thiago”, com muita educação, o cara não gritou com ele, falou assim… “Thiago, rapaz, você não pode fazer isso, você não pode entrar com o carro aqui”. Aí o Thiago começou a gritar e xingar esse senhor, falando: “Quem manda nessa? sou eu, eu faço o que eu quiser e você cale a sua boca”.

MATEUS ARAÚJO: Thiago explicou para K., que o tal senhor era um dos herdeiros do Banco Itaú.

K.: É um bosta, é um merda, morre de medo de mim.

MATEUS ARAÚJO: A família Setúbal, que é uma das maiores acionistas e já teve alguns de seus membros nos quadros mais altos do banco Itaú, realmente tem casas no condomínio Boa Vista. Agora, se um deles era o cara vítima das agressões de Thiago, aí é outra história. De qualquer forma, aquela reação truculenta acendeu um alerta em K.

K.: Ali foi a primeira vez que eu já comecei a sentir medo do Thiago. Da forma agressiva, eu juro pelos meus filhos, o jeito que ele falava com esse cara, era algo assim, surreal, a arrogância dele falando com esse senhor. E o senhor super educado, extremamente educado e o cara não falou mais nada com o Thiago, o cara não xingou ele de volta, não retrucou o Thiago, o cara simplesmente acatou o que o Thiago falou pra ele e não falou nada.

MATEUS ARAÚJO: Antes do caso da agressão na Bodytech, nenhum crime supostamente cometido por Thiago tinha sido noticiado na imprensa. E ele sempre fez questão de ressaltar isso, como nesse vídeo publicado em seu extinto canal no YouTube:

THIAGO BRENNAND EM VÍDEO NO YOUTUBE: Um cidadão sem nenhum antecedente criminal, mas não é nenhum como disse o Ciro Gomes no debate sobre um candidato (“não, ele foi absolvido portanto goza de sua plena cidadania”). É nenhuma condenação. Nem Juizado Especial, nada! Nem em primeiro grau, nada!

MATEUS ARAÚJO: Ah, às vezes, Thiago se refere a si mesmo na terceira pessoa do singular:

THIAGO BRENNAND EM VÍDEO NO YOUTUBE: Nenhum processo em sua história no exterior onde viveu mais de 25 anos nenhum processo em sua história no estado de São Paulo, onde passou a maior parte da sua vida adulta.

MATEUS ARAÚJO: Mesmo cismada com o jeito com o qual ele tratou o vizinho, K. resolveu confiar na versão gentil de Thiago que tinha conhecido nas últimas semanas pela internet. Depois do passeio pelo condomínio, os dois foram jantar no Nagayama, restaurante japonês que fica no bairro do Itaim Bibi, acompanhados de uma amiga dele, S. A gente ligou pra ela.

JULIANA SAYURI: Oi, bom dia! Por favor, a [silenciado]?
S.: Sou eu.
JULIANA SAYURI: Oi, [silenciado], meu nome é Juliana, eu sou jornalista do UOL. Tudo bem?
S.: Tudo bem.
JULIANA SAYURI: Meu colega jornalista, Mateus, e eu estamos produzindo um podcast sobre o caso Thiago Brennand, eu entendo que você é amiga dele, é isso?
S.: Eu não tenho interesse em falar sobre isso, eu também tô dirigindo, não tô podendo falar.
JULIANA SAYURI: Em outro momento você aceitaria dar entrevista?
S.: Não, brigada. Tchau, tchau.

MATEUS ARAÚJO: No depoimento, K. também não deu muitos detalhes a respeito do jantar, só resumiu que foi tudo perfeito no primeiro dia. Na volta pra casa, eles fizeram sexo consensual pela primeira vez, segundo K. Ainda que na relação dos dois as coisas tenham saído como K. esperava, era impossível não reparar em outros alertas sobre o comportamento de Thiago que insistiam em dar as caras.

K.: Achei muito estranho o fato dele… Se ele saía do quarto, pra sala, ele vai armado. Ele vai no banheiro ele leva a arma. E todas as vezes que ele ia no banheiro, ele chamava a funcionária dele, a [silenciado], pra estar presente no banheiro com ele. Eu nunca vi algo tão bizarro em minha vida. Tem um banquinho de madeira que fica no closet dele, ela pega esse banquinho, leva no banheiro e fica sentada enquanto ele está no banheiro. Quando saía do banheiro, armado, a arma fica do lado da cama dele… Minto, a arma fica sempre dentro da gaveta ou no móvel da televisão, ele colocava a arma dele ali do lado, sempre.

MATEUS ARAÚJO: A arma também estava por perto no dia seguinte à chegada dela, enquanto tomavam banho, quando Thiago reparou que K. tinha uma tatuagem na costela.

K.: Ele viu que eu tinha três letras aqui no meu corpo e perguntou: “O que que é isso?” Aí eu falei: “Isso aqui são as iniciais do meu ex-namorado e fica [silenciado]”. Aí ele: “É sério?” Aí eu falei: “Qual o problema?”

MATEUS ARAÚJO: Ainda que ele soubesse do antigo relacionamento de K., as letras miudinhas tatuadas na pele dela foram motivo para despertar a ira de Thiago. A mulher conta que aquela mesma raiva que viu ele aplicar no senhor que estava no estábulo do condomínio, agora estava voltada pra ela. E numa potência ainda mais elevada. Afinal, ninguém de fora podia ver o que tava acontecendo ali.

K.: Ele falou assim: “Quero ver seu telefone”. Eu falei assim: “Como assim você quer ver o meu telefone?”. Daí ele: “Me dá seu telefone”. Aí eu falei assim: “Não vou dar meu telefone pra você, Thiago”. Daí ele falou assim: [silenciado] Eu vou te pedir mais uma vez. Me dá seu telefone”.

MATEUS ARAÚJO: Ela negou mais uma vez. E ele reagiu.

K.: Foi quando ele me deu um tapa na cabeça, me empurrou no chão e pegou meu telefone e falou assim: coloca a sua senha. Dei a minha senha pra ele, daí eu já tava chorando. Apavorada da agressividade dele. A empregada dele chegou no corredor, viu eu chorando, viu ele gritando comigo, parada ali ela ficou, ele entrou no quarto dele e trancou a porta. E eu tentei abrir a porta, falei: “Thiago, me dá meu telefone, eu vou embora daqui agora, você é louco!” E eu falava assim: “[silenciado], o que que tá acontecendo aqui? O que é isso?” Eu não acreditei que tava vivendo aquilo naquele momento. Ela inclusive olhou pra mim e falou assim: “Menina, eu tô rezando por você”. Eu fiquei batendo na porta dele, pedindo pra ele abrir a porta, falando que eu queria ir embora, falando pra ele me dar meu telefone e ali ele saiu com mais raiva ainda, me bateu de novo, me empurrou nesse quarto e me trancou lá dentro.

MATEUS ARAÚJO: K. não sabe dizer que horas foi trancada no quarto de hóspedes. Mas lembra que ao entrar ali ainda era dia. Quando Thiago abriu a porta, a tarde desse segundo dia que eles passavam juntos já tinha ido embora.

K.: Quando ele chegou no quarto, eu comecei a chorar, com medo dele e falava assim: “O que tá acontecendo? Por que que você fez isso?” E ele começava: “Porque você é um rato, você é um rato, você é uma puta, você não presta igual a todas as outras mulheres”, e os xingamentos começaram ali do nada. E eu chorando, falando “pelo amor de Deus, me deixa embora”. E ele falava que não, aí ele foi me puxando pro quarto dele, chegou no quarto dele, aí ele começou a tirar a minha roupa, ele me virou de frente primeiro e começou a falar “pede desculpa”. E eu falava: “Pede desculpa do quê?” Daí ele: “Pede desculpa”. “Do que eu vou te pedir desculpa, Thiago?” E ele falava assim: “Pede desculpa, quem manda nessa porra sou eu. Você é uma puta, você é uma vagabunda”. E veio o meu primeiro tapa na cara. Aí veio o segundo. E ali foram tapas sucessivamente, um atrás do outro, e eu já não sabia mais o que fazer [começa a chorar], não sabia nem por que estava apanhando de alguém…

MATEUS ARAÚJO: K. diz que todos os empregados estavam na casa. Se eles ouviram o que tava acontecendo, não dá pra saber. O que ela contou em depoimento é que ninguém ligou pra polícia ou tentou abrir a porta do quarto pra tirá-la de lá.

K.: Era de pé, ele tem um móvel. Sabe aquele móvel que fica debaixo da televisão, a TV unity? Ali, naquele móvel, ele me virava de costas, segurava e forçava o ato ali. Então, assim, era o ato, virava e era tapa. O ato e tapa. Ao mesmo tempo. Ele pegava sapato, pegava chinelo pra bater… E, assim, eu comecei a sangrar e eu falava assim: “Pelo amor de Deus, para”. E ele não parava. [Chora]. Aí, finalmente, quando ele parou, ele me levou pro banheiro, ele chamou a empregada dele. Tipo assim, ele chamou a [silenciado], eu ali parada, na frente do espelho. Minto, depois que ele terminou de fazer o que ele queria, ele me pegou na mão e falou assim: “Coitadinha de você, né? Olha como você chegou, o brilho que você tinha, olha o que você é agora. Você não é mais nada, você merecia, você é um rato”. Aí pegou na minha mão, me levou até o banheiro e ainda chamou a empregada pra ver. E falava assim: “[silenciado] Olha a bichinha, olha como ela tá a bichinha”. E a [silenciado] olhava, olhava pra ele, olhava pra mim e não falava nada.

MATEUS ARAÚJO: Essa não foi a primeira acusação de que Thiago Brennand agrediu e estuprou uma mulher na mansão de Porto Feliz. Mas foi a primeira vez que o assunto chegou, de fato, à Justiça. E, depois da repercussão do caso da academia Bodytech, outras mulheres decidiram falar, derrubando a máxima que antes operava por lá: O que acontece em Porto Feliz fica em Porto Feliz.

No próximo episódio de “Brennand”:

THIAGO BRENNAND EM VÍDEO NO YOUTUBE: Quem era o maior colecionador de armas táticas? O que há de mais moderno era a minha coleção! Hábito que vem de família, hábito secular!

K.: O medo que eu tinha é que ele fosse pegar aquela arma e atirar em mim em qualquer momento.

C.: Ele falava que ele tem bastante arma, bastante arma sem registro, sem número serial. Quando ele quer finalizar as pessoas na lista negra dele, ele não vai ser descoberto. E, antigamente, ele falou que ele fica escondido no hotel dele, atrás do gesso.

K.: Agora vem aqui pra sala, que o fulano de tal tá nos esperando. E, pra mim, ele ia fazer alguma tatuagem nele, jamais na minha cabeça imaginei que ele fosse? Daí ele falou: “Você vai tatuar agora. Você vai tirar isso aí e você agora vai tatuar a minha marca, você agora é propriedade minha”.

MATEUS ARAÚJO: Eu sou Mateus Araújo e esse é “Brennand”. A pesquisa e a reportagem do podcast foram feitas por mim e por Juliana Sayuri. O roteiro é de Clara Rellstab. Montagem é de Danilo Corrêa. Desenho de som de João Pedro Pinheiro. Trilha sonora de João Pedro Pinheiro com base na obra de Luiz Álvares Pinto. Trilhas adicionais do Epidemic Sound. O design é de Eric Fiori. Motion Design de Leonardo Henrique Rodrigues. Direção de arte de Gisele Pungan e René Cardillo. Coordenação de Juliana Carpanez, Ligia Carriel e Olivia Fraga.

 

 

 

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