Terra do Jura tem sido cantada em verso e prosa por poetas, artistas e boêmios ao longo desses últimos cento e tantos anos de sua história. Não é para menos. Terra de clima bom, de água cristalina, da opala, uma terra abençoada. Não é sem razão, pois que o lugar tem sido cantado por poetas, artistas e cantadores ao longo das décadas. Um papo com os amigos, meia hora e se põe tudo em dia. Quem casou com quem. Quem separou. Quem pulou a cerca, enfim.
Um dia desses estava tomando uma cerveja com amigos no bar de Chico Cotia quando o danado do Zé Galinha, o maior fofoqueiro da cidade, ia passando e a gente chamou ele. De início o bicho fez que não vinha. Nem deu as caras, passou reto sem olhar para a gente. Aí quando o danado já ia dobrando a esquina, Chico Neves gritou:
– Vai querer uma dosezinha não?
Ave Maria, o bicho parecia que tinha fogo no rabo. Deu meia volta e meteu o pé na carreira no nosso rumo. Coisa de segundos e já estava lambendo os beiços. Não rebolou nem um pouquinho da cachaça para o santo.
Depois tomou mais uma dose e mais outra e isso tudo porque estava apressado para ir atender ao chamado de um cliente. Mas quando Chico Neves pousou-lhe um cigarro no bico, o homem puxou logo uma cadeira e ao se sentar tratou de dar uma baforada que levou quase metade do cigarro. Pronto, os sacanas haviam pegado o pobre do Chico Cotia para dele extrair os segredos mais cabeludos da fina sociedade de Terra do Jura.
Nisso os Pereira Brothers não resistiram e deram uma gargalhada. Um deles chegou mesmo a peidar. Tinha esse costume. Ria-se que chegava a abrir as pregas do cu e peidava. Os outros apertaram os narizes até o cheiro passar mais e voltaram a cair na gargalhada.
O único que não tampou o nariz foi Zé Galinha que por agora entornava talvez o quinto copo de cachaça. Zé Galinha não iria mais continuar sua saga, realizar algum trabalho na casa de alguém naquele dia. Depois do quinto copo de cana quase não conseguia mais manter a cabeça levantada.
O grupo já não dava mais atenção ao homem encharcado de álcool e tangendo a nuvem de mosquitos que o aperreavam. Agora falavam pelos cotovelos, mas sobre política. Lá fora da vendinha o sol indicava que era quase meio dia. Ao fim da rua onde começava um campo de futebol improvisado o vento de agosto esgarçava a superfície da areia fina que até há pouco tinha sido impiedosamente pisada por dezenas de pés de meninos que disputavam avidamente uma bola velha e murcha.
Admiro o pessoal todo da mesa, todos são gente boa. Claro que o que acabaram de fazer com o Zé Galinha é coisa para padre Mário depois repreender na missa, pois alguma beata barata de igreja irá ao ouvido do servo de Deus contar o que estamos fazendo aqui.
Tudo gente boa, mas o poeta Chico Neves, esse eu admiro por demais, como digo para ele com essas palavras e ele ri. Conheço Chico Neves desde menino, temos quase a mesma idade, questão de meses de diferença. De nós cinco é o único que já mora na capital faz um ano. Foi fazer o colegial. É bom em matemática, física, química, biologia. É bom em Português. É bom em tudo e tira nossas dúvidas todas quando empacamos numas dessas coisas aqui no ginásio. Além disso é um poeta.
– Pensando na morte da bezerra, meu rapaz?
A voz de Chico Neves me tira dos pensamentos. O jeito é rir. Zé Galinha já está escornado numa mesa próximo ao banheiro. Alguém deve ter tido a dignidade de ajeitar o corpo dele para não cair de vez. O pessoal daqui na roda já boceja, levantava os braços. Já não pedia mais cerveja. A mesa estava coalhada de pratinhos de tira-gosto e por isso o garçom veio limpar.
– Mais ou menos, poeta. Fazendo algum poema, agora? E ele respondeu com a cabeça que sim, estava escrevendo um livro de poesia.
(Trecho do romance “Terra do Jura”, a ser publicado)
Ernâni Getirana, é professor, poeta e escritor. É autor, dentre outros, do livro “Debaixo da Figueira do Meu Avô”. Escreve às quintas-feiras para esta coluna. @ernanigetirana