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Tancredo, o último estadista brasileiro, morria há 36 anos

Ele não era um líder de massas que coubesse em um desses modelos que se tem visto ultimamente. Não era.

Em sua época, porém, ganharia a eleição de presidente de qualquer candidato, se ela tivesse sido decidida no voto popular.

Como o jogo foi outro, ainda através do voto indireto, ele se submeteu às regras postas – na verdade, impostas – e venceu no Colégio Eleitoral.

Tancredo de Almeida Neves, o autor de tal façanha, entrou para a história como o último estadista do século 20.

Ele uniu o país em um momento excepcionalmente dramático de sua vida republicana, marcado pelo fim do ciclo de 21 anos dos militares no poder.

O último ato
Foi o último ato político de uma carreira pública, iniciada em 1951, com sua primeira eleição para a Câmara Federal. A partir de junho de 1953, foi ministro da Justiça de Getúlio Vargas até o suicídio do presidente. Ele ainda viu o presidente em suas últimas agonias, após o tiro que disparou no peito, em 24 de agosto de 1954.
Com a instauração do regime parlamentarista, logo após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, foi nomeado primeiro-ministro do Brasil. Ocupou o cargo de setembro de 1961 a julho de 1962.

Seus atos foram marcados sempre pela moderação. Era líder do presidente João Goulart na Câmara dos Deputados quando este foi deposto pelos militares, em 1964.Na tumultuada sessão do Congresso Nacional que declarou vago o cargo de presidente, ele saiu do tom. Foi uma das raras vezes que fez isso. Aos berros, chamava os golpistas de canalhas.

Durante o regime militar, foi um dos principais líderes da oposição, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ao se reeleger deputado federal em 1966, 1970 e 1974. A seguir, elegeu-se senador.

Em 1982, foi eleito governador de Minas e renunciou ao mandato para ser candidato a presidente da República, em 1985.

O candidato das ruas
Naquele março de 1985, o Brasil se preparava para dar posse, enfim, ao seu primeiro presidente civil, depois de cinco generais sem voto exercendo sucessivamente a Presidência da República – Castello Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Tudo bem que Tancredo não tinha o respaldo das urnas, mas tinha o das ruas. Tancredo fez campanha nas ruas, através de numerosos e concorridos comícios, com o slogan Muda Brasil!

Ele venceu no Colégio Eleitoral com 480 votos, contra 180 de Paulo Maluf (PDS).

Embora eleito pelo voto indireto, ele encarnava os sentimentos de mudança que o país respirava naquele momento.

Por isso, o Brasil depositava nele a esperança de um reencontro com a democracia.

A vontade de tê-lo na Presidência era tamanha que os brasileiros fizeram vistas grossas para o seu vice, José Sarney, um recém-egresso do partido dos militares que na última hora pulou fora do barco e enfileirou-se na trincheira das oposições.

A Nova República
Com a vitória no Colégio Eleitoral, o ministério composto e vencidos todos os obstáculos para a subida da rampa do Palácio do Planalto, a festa da posse, marcada para 15 de março, era apenas uma questão de horas.

O noticiário televisivo da noite de 14 de março dava conta dos últimos preparativos para as cerimônias que iriam inaugurar um novo tempo no Brasil, que Tancredo chamou de “Nova República”.

Os brasileiros foram dormir, assim, na expectativa da grande festa cívica.

Quando o país acordou, na manhã do dia 15, chocou-se com a bombástica notícia veiculada pelo rádio e pela televisão: o presidente fora internado às pressas e submetido a uma cirurgia de urgência, em Brasília.

A notícia que dali a instantes se reproduziria e se repetiria à exaustão pelo país e pelo mundo afora dava fim a toda a euforia nacional.

Brasília mergulhava em clima de tensão e o Brasil, em um mar de incertezas.

Enganaram o presidente
Tancredo Neves, então com 75 anos, vinha sentindo dores no abdômen há dias. A princípio, procurava disfarçar o incômodo, passando levemente a mão sobre a barriga. Não queria aproximação com hospital.

Sua cisma fazia sentido. Havia perdido dois irmãos para o câncer. Assim, resistiu o quanto pôde à internação. Chegou a avisar que tomaria posse de maca.

Para convencê-lo a se internar, os médicos lhe disseram que era apenas para tomar soro com antibióticos e realizar novos exames.

A caminho do centro cirúrgico, em uma maca, apesar de já estar conformado com a operação, reclamou para a equipe médica:

– Vocês me enganaram, né?

Diagnóstico falso
“Enquanto Brasília vivia uma madrugada chuvosa e tensa, sob o diagnóstico falso de diverticulite de Meckel, inventado para iludir e tranquilizar o assustado povo brasileiro, começava a agonia pessoal do presidente Tancredo Neves e a do governo”.

Esta é uma das passagens do livro que o mineiro Ronaldo Costa Couto, escolhido por Tancredo como seu ministro do Gabinete Civil, escreveu em 1995 sobre a trajetória do ex-presidente.

Intitulado Tancredo Vivo – Casos e Acasos, o livro publicado dez anos após a sua morte relata:

“O médico Francisco Pinheiro da Rocha corta com seu bisturi frio o ventre inchado de Tancredo. O caso era de abdômen agudo cirúrgico. Depois se verifica que era inflamação de tumor benigno. Uma cirurgia simples, na avaliação médica”.

Cirurgia em sessão pública
Contra as normas e recomendações, a cirurgia teria sido assistida por 30 a 40 pessoas, relata o livro:

“Pouquíssimas teriam que estar no centro cirúrgico, muito menos na disputada sala de cirurgia, onde o excesso de pessoas, a negligência com os procedimentos obrigatórios de prevenção e a situação específica do hospital multiplicaram os riscos de infecção”, critica Ronaldo Costa Couto. Ele prossegue: “Eram presenças por interesse político ou de outras naturezas. Médicos ou não, todos os que ali estavam desnecessariamente aumentaram o risco de contaminação do ambiente cirúrgico e do indefeso paciente”.

O autor questiona: “Mesmo sem má-fé dos médicos ou de quem quer que seja, você admitiria ter seu ventre aberto diante de dezenas de pessoas, caro leitor? A maioria delas sem qualquer intimidade, relacionamento ou mesmo conhecimento com você?”

E arremata: “Pois fizeram isso com o presidente da República naquela noite. A cirurgia terminou às 3 horas da madrugada. A sete horas do horário da posse perante o Congresso Nacional”. (p.194 e 195).

Nova operação
Sarney tomou posse, no dia 15, mas o governo ficou capengando com a ausência de Tancredo no comando. Passavam os dias e Tancredo não dava qualquer sinal de melhora.

Ronaldo Costa Couto registrou: “Os médicos ficam preocupados com a paralisia intestinal do presidente que já se arrastava desde o dia 15. Concluíram que era “nó nas tripas” e decidiram fazer uma nova cirurgia, dia 20. Uma laparotomia branca. Não havia um único nó nas tripas do presidente. Dúvida: abriu-se a barriga dele em vão?” (p.256).

Um show macabro
Em 25 de março, retiraram Tancredo da UTI e o puseram em uma cadeira de rodas. Ele foi conduzido até uma sala previamente preparada.

“Ali, vestido de pijama e robe de chambre, uma alegre echarpe no pescoço, de meias e calçando chinelos fechados, o ventre perceptivelmente inchado, posou para fotografias com a equipe médica.

Nelas, todos riam, aparentando descontração e confiança. Mais exposição e sacrifício do doente. Algo inteiramente dispensável. O país sofria com Tancredo, mas estava em paz, sem nenhum sinal de instabilidade”, conta. (p.258).

Horas depois, coincidência ou não, Tancredo sofria forte hemorragia interna. Na manhã seguinte, era transferido às pressas para São Paulo, em uma maca, no avião presidencial.

“No Instituto do Coração, o Dr. Henrique Pinotti divulgava boletim médico informando que o paciente carregava infecção hospitalar contraída em Brasília.

Ele havia acompanhado o tratamento do residente na capital e jamais falara em infecção hospitalar”, observa o autor.

Tancredo morreria nas mãos de Pinotti, na noite de 21 de abril de 1985, vítima de infecção generalizada, após passar por sete cirurgias, duas em Brasília e cinco em São Paulo.

A difícil travessia
Sem Tancredo, o Brasil fez a travessia para o regime democrático a duras penas. A legitimidade de Sarney foi afrontada por muitos e não reconhecida por tantos outros líderes.

Para vencer a disputa no Colégio Eleitoral, Tancredo havia sangrado o regime militar, atraindo para sua campanha expressivas lideranças do partido do governo, mas sem causar traumas.

A Aliança Democrática que o levou à vitória, formada pelo PMDB e o PFL, contou ainda com o apoio de outros partidos de oposição.

O PT foi a única sigla a não votar nele. Absteve-se, em sinal de protesto, por avaliar que se tratava de um arranjo político de cúpula.

E, de fato, era mesmo. Naquele momento, sem o povo ter direito a votar para presidente, não havia outro caminho para derrotar o sistema.

Porém, o arranjo político só saiu porque Tancredo soube conversar com todas as correntes políticas com ponderação, sem sujar as mãos nem trair suas convicções democráticas.

Soube costurar, paciente e habilmente, a conciliação nacional e interpretar os sentimentos do país. Soube, enfim, ser estadista em uma hora da maior gravidade para o Brasil, catalisando os sonhos e as esperanças de seu povo.

Fonte: zozimotavares.com

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